Linera conta como a Bolívia está se reinventando

Marxista heterodoxo, vice-presidente explica o reconhecimento da Justiça indígena, a redistribuição radical de terras, o esforço contra a burocratização e a ideia de que a revolução é longo processo — não ato redentor

Por Bruno Pavan, no Retrato do Brasil

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Marxista heterodoxo, vice-presidente explica o reconhecimento da Justiça indígena, a redistribuição radical de terras, o esforço contra a burocratização e a ideia de que a revolução é longo processo — não ato redentor

Por Bruno Pavan, no Brasil de Fato

Em passagem por São Paulo, o vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, esteve nesta segunda-feira (5) na Instituto Lula para participar do seminário “Bolívia: dez anos de transformações políticas, étnicas e sociais”.

Um dos pontos mais debatidos foi o conceito de plurinacionalidade da República Boliviana. Linera apontou que o conceito levou a uma nova arquitetura democrática no país. “O processo começa com o reconhecimento da nação no contexto de uma entidade maior: os povos indígenas são portadores das identidades nacional e estatal, e fazem parte da estrutura política”.

Além disso, Linera apontou para os perigos que os governos progressistas no continente podem correr caso não consigam manter a sociedade civil organizada em torno de pautas populares. “Pensar que quando chegamos ao poder atingirmos o ponto mais alto da luta leva a uma desmobilização social que pode ser tomada pelos setores de direita”.

Abaixo seguem as principais passagens de sua fala:

A plurinacionalidade

Sempre fomos um país que, ao longo da história, foi caracterizado por instabilidade política, golpes de Estado e extrema pobreza. O país mudou bastante nessa década, houve transformações que transformaram a realidade social, a estrutura do Estado e a vida coletiva dos bolivianos.

A maioria indígena do país sempre foi marginalizada por políticas de extermínio, escravatura e a tentativa de reduzir esse povo a guetos. No nosso governo, houve uma mudança no papel dos povos e nações indígenas na sociedade.

A plurinacionalidade foi a inovação política que levou a essa nova arquitetura em que os povos indígenas são um poder do Estado e um passo além do antigo debate do papel das nações dentro do Estado. O processo começa com o reconhecimento da nação no contexto de uma entidade maior, os povos indígenas são portadores das identidades nacional e da identidade estatal, fazem parte da estrutura política e da estrutura estatal. E isso não ia dar certo sem uma liderança indígena.

Um exemplo é a que Constituição reconhece uma jurisprudência indígena, que resgata o conjunto de procedimento e lógicas de procedimentos quando lidamos com os crimes. Os indígenas, agora, participam da forma narrativa do Estado, e toda a forma de nacionalismo na América Latina é uma forma de construção da história de um país.

A principal decisão que nos permitiu essas mudanças foi a ressignificação do conceito de democracia. Ela passou a ser praticada e entendida não só como a antessala dos processos de revolução, mas o espaço em que eles se desenvolvem. Há mais democracia com mobilização da sociedade – ela [a democracia] é o voto, os direitos coletivos e individuais, liberdade e a organização autônoma da sociedade sobre os assuntos comuns. Dessa forma, estamos no debate sobre as formas democráticas na construção do socialismo. Socialismo e democracia não são instâncias distintas, o socialismo é quando a democracia parte do político para o social, é a radicalização da democracia.

Redução de desigualdades

Tivemos também um maior controle da redistribuição da riqueza por parte do Estado. Essa é a base da plurinacionalidade. Nos últimos anos, como aconteceu nos países latinos, 20% dos bolivianos deixou de ser extremamente pobre pra uma renda média e conseguimos erradicar o analfabetismo. O Estado começou a agir e a estabelecer créditos a juros zero para pequenos agricultores e comerciantes e, em parceria com a iniciativa privada, construimos casas populares para os mais pobres. Além disso, atacamos a desigualdade através da redistribuição justa de terras. Nos últimos anos mudamos esse regime, o setor empresarial que tinha 36 milhões de hectares e hoje detém 6 milhões, as comunidades indígenas saíram de zero para 23 milhões de hectares e os camponeses tinham 13 e passaram a ter 17 milhões.

Além disso, nos últimos 9 anos o PIB bolivianos cresceu 300%. Mantivemos uma taxa de crescimento de 5% a 5,5% ao ano, e este ano, em plena crise e a queda no preço das commodities, o crescimento será de pelo menos de 4,8%.

Os perigos do processo

Todo o processo não está isento de perigos que desviam ou modificam o progresso. Pensar que ao conseguirmos o poder atingimos o ponto mais alto da luta pode levar a uma desmobilização social e um processo de despolitização que pode ser utilizado pelos setores de direita para promover uma mobilização social conservadora.

Outro risco é o conservadorismo administrativo, o fetichismo legalista. É preciso obedecer a norma, mas ela não pode estar a acima das decisões construídas pela sociedade. Nós não podemos nos tornar prisioneiros dos técnicos, que parecem ter mais poder que o presidente. A norma deve estar subordinada a sociedade.

Tudo isso pode levar a um processo de despolitização nacional. O povo organizado no poder quer que seus quadros virem políticos e assim uma massa crítica passa da ação social para a administrativa. Isso é necessário, mas é preciso medir os ritmos, porque isso pode fazer com que haja uma perda de lideranças para a sociedade civil que é muito difícil de construir. Um bom administrador público se forma em dois ou três anos, já uma liderança civil pode demorar décadas. A chave é saber equilibrar isso sem perder a força no social.

A economia é a política concentrada”

Nossa experiência apontou que os processos, depois de ter se tomado o poder, são definidos na economia. Lenin dizia que a política é a economia concentrada. Não há nada que deixe de ser política, uma lei, um investimento, um crédito, uma taxa de juros. É sempre preciso ver nas decisões quem ganha e quem perde com elas. A economia existe desde muito antes de termos chegado ao governo. O mercado, a propriedade, têm muitos séculos de história e quando nós nos acomodamos, somos absorvidos e a única forma de superar o peso da tradição e dos poderes anteriores é a audácia.

Um perigo que ameaça um governo revolucionário é fazer na economia aquilo que a direita deveria fazer. Para enfrentar as crises econômicas, a redução da renda, são necessárias medidas, mas não devem ser aquelas que tomariam a direita.

É bom lembrar que, depois de 10 anos, nenhum presidente, vice ou ministro precisa de autorização do Banco Mundial e do FMI e dos Estados Unidos pra definirmos o nosso próprio destino, mas eles seguem conspirando, porque a direita aprende melhor que a esquerda com suas derrotas.

Fim do ciclo?

A direita vive dizendo que os governos progressistas na América Latina estão chegando ao fim. A novidade é que os setores progressistas e de esquerda estão também apoiando esse discurso e isso é grave. Depois dos nossos governos, não virão novos governos mais revolucionários, mas uma direita ainda mais conservadora. Em 1971 houve um governo progressista na Bolívia. Ele foi atacado pela direita e pela esquerda que buscava o socialismo. A conclusão é que ele caiu e entraram os governos militares. O que deve existir são revoluções a partir dos governos, empurrando os processos existentes, a outra alternativa é a direita e o retrocesso.

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