Itália: uma nova esquerda à vista?

Viola Carofalo, líder do “Potere ao Popolo”, que reúne comunistas, ativistas de movimentos sociais, sindicalistas e católicos, diante do desafio de somar 3% dos votos no domingo

Manifestação do Potere ao Popolo, partido italiano que surgiu em articulação com os movimento sociais

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Viola Carofalo, líder do “Potere ao Popolo”, que reúne comunistas, ativistas de movimentos sociais, sindicalistas e católicos, diante do desafio de somar 3% dos votos no domingo

Por Federico Larsen, no Página 12 | Tradução: IHU Unisinos

Seu movimento foi recebido na Europa como o ressurgimento da esquerda radical italiana. Potere al Popolo [Poder para o Povo] nasce da iniciativa de movimentos sociais ligados ao trabalho de bairro, centros culturais e ativismo político de base. Aqueles que, desde os anos 1990, se fazem chamar movimentos antagonistas, herdeiros diretos da heterogênea e fecunda esquerda extraparlamentar italiana dos anos 1970 e 1980. A essa base se somaram o Partido da Refundação Comunista – uma minoria do Partido Comunista Italiano que não se diluiu no progressismo moderado, nos anos 1990 – e os sindicatos filiados à Confederação de Sindicatos de Base (Cobas) e à União Sindical de Base (USB). Além de organizações católicas e sociais de defesa dos direitos de migrantes e trabalhadores precários.

Entre seus primeiros adeptos na Itália estão sindicalistas como Giorgio Cremaschi, a histórica feminista Lidia Menapace, a ativista Heidi Giuliani, mãe de Carlo, o jovem assassinado durante a repressão às manifestações contra a cúpula do G8, em Gênova, em 2001, e até o ex-treinador de futebol Renzo Ulivieri. Jean-Luc Mélenchon, o líder de França Insubmissa, já os reconheceu como os expoentes da nova esquerda europeia na Itália. Em seu ato de lançamento, em novembro, havia representantes do Podemos, do Grupo Confederado da Esquerda Unitária Europeia e delegações de todo o continente.

Mas, no momento, o objetivo da nova formação italiana é muito mais humilde que o de seus pares na França e Espanha. Primeiro, precisarão superar a marca de 3% nas eleições de março para poder ingressar no Parlamento. Embora alguns analistas italianos já consideram isto um fato, a dispersão do voto de esquerda e a acumulação do voto de protesto por parte do Movimento 5 Estrelas (M5E), hoje primeiro partido na Itália, podem ter um papel determinante.

Luta contra a precariedade no trabalho, reforma do sistema de aposentadorias, defesa dos recursos naturais, retirada da OTAN e de pactos militares, desarmamento, acolhida humanitária aos migrantes são alguns dos pontos do programa apresentado para disputar os votos do M5E e de Liberi e Uguali, uma cisão recente do governante Partido Democrático, que beira os 7%.

Segundo a nova lei eleitoral, o Rosatellum, todas as listas que se apresentarem para estas eleições também devem apresentar um símbolo e um líder político. Aos 37 anos, a metade deles passados entre estudo e militância social, Viola Carofalo, pesquisadora precária da Universidade L’Orientale de Nápoles, assumiu esse papel. Ainda que se apresse a explicar que não é uma função na qual esteja muito cômoda. “Neste momento, estou limpando minha dispensa após uma invasão de cupins”, aponta ao dar início à entrevista, via telefone, de sua casa em Nápoles. “Seria uma imagem pouco apropriada para o que se diz um chefe político”.

A íntegra da entrevista:

Viola Carofalo

Também tem a ver com o se desfazer do rótulo imprimido aos políticos de profissão, não? Compreendo que, hoje, ser político é muito mal visto na Itália.

Nós somos gente que faz política. Mas, não somos políticos. Somos ativistas de base, de comitês e associações. Fazemos política cotidianamente nos territórios, mas não somos “gente do parlamento”, não temos privilégios. Decidimos impor como regra aos candidatos a doação do salário, em caso de ser eleito, às atividades sociais e políticas, e que fiquem com o equivalente a um salário de operário.

Em inícios dos anos 2000, a esquerda radical italiana parecia ter iniciado um momento de crescimento. O Partido da Refundação Comunista conseguia chegar aos 6 ou 7% dos votos, as greves gerais da Central Geral Italiana dos Trabalhadores (CGIL) contra a reforma do estatuto dos trabalhadores e as massivas mobilizações contra a guerra no Iraque, em 2003, aglutinaram um movimento heterogêneo e aparentemente forte. Contudo, após mais de dez anos, essa mesma gente aparece desmobilizada, ou entre as filas do Movimento Cinco Estrelas. O que aconteceu com a esquerda italiana nesses anos? Como se coloca a proposta do ‘Potere al Popolo’, nesse contexto?

Eu me formei politicamente nesses movimentos de inícios do século, recordo-me bem. Acredito que existiram dois elementos, em meio a uma crise econômica muito forte na Itália, que levaram à desintegração dessa esquerda e à perda de consensos e reconhecimentos da esquerda Italiana. Um elemento interno e um externo. O elemento externo tem a ver com o que aconteceu em Gênova, em 2001, durante as manifestações contra o G8. Houve uma feroz repressão, e vivemos a tentativa de separar os bons dos maus na esquerda. Os bons eram inocentes cidadãos e os maus eram os Black Blocka ntiglobalização, construídos também um pouco ad hoc jornalisticamente.

Desse modo, conseguiu-se partir em duas a chamada sociedade civil, a que fazia política e se reconhecia na ampla acepção da esquerda. E, depois, houve uma muito forte responsabilidade interna da própria esquerda. Por um lado, as organizações partidárias quiseram perseguir modelos que não podiam sustentar e nos quais seus militantes e eleitores não se reconheciam, fechando acordos com outras forças políticas e mantendo a vida parlamentar como única via ou único objetivo. Não foi assim para todos, mas acredito que, em geral, foi possível ver esta deriva e este fechamento para as bases. Houve pouco cuidado com as realidades de base nos bairros e círculos. A esquerda antagonista, extraparlamentar, teve um erro semelhante, o de cair na autorreferencialidade, o de se fechar em seu território, em seu centro social, em seu comitê, sem se preocupar em construir uma rede mais ampla, em compreender o efeito que esse fechamento tinha sobre o futuro político.

Alguns movimentos locais são ainda fortes e reconhecidos, como o movimento contra o Trem de Alta Velocidade (No TAV). Mas, é uma exceção. Em todo o país houve experiências que se atomizaram, fechadas em si mesmas, muitas vezes, até com linguagens incompreensíveis para o restante da sociedade. Frente a isso, veio uma grande onda antipolítica representada pelo Movimento Cinco Estrelas, que sustentava que aqueles que faziam política eram todos mascalzoni e ladrões, e que todos os políticos são iguais. É necessário dizer que conseguiram um grande êxito dizendo estas coisas, mas porque evidentemente se fundavam sobre algumas verdades. Esta onda antipolítica soube canalizar boa parte desse inconformismo que em outras nações europeias, como na Espanha ou França, ao contrário, encontrou uma saída muito mais propositiva e mais frutífera do ponto de vista do crescimento da esquerda. Podemos e Mélenchon são um exemplo disso. Na Itália isto não aconteceu. Provavelmente, também por estes vícios que detectamos, e um pouco pelo papel do Movimento Cinco Estrelas. Nós queremos voltar a atrair muitas dessas pessoas que votam ou votaram no M5E, ainda se sentindo de esquerda, porque não se reconheciam em nenhuma outra organização partidária e então optaram por um voto de protesto.

O objetivo é também ser expressão dessa esquerda que, entre Podemos, Mélenchon e Corbyn, está começando a ser vista no restante da Europa?

Sim, claramente. Essas são todas experiências muito diferentes, cada uma com sua história e especificidade. Mas, há dois fatores que as unem. O primeiro é que se trata de uma esquerda que, enfim, começa a ganhar. O que não é pouco. E por ganhar não me refiro somente ao âmbito eleitoral, mas, sim, essencialmente na presença da sociedade, com os discursos, manifestações de massa. Ou seja, uma esquerda que começa a ter uma presença concreta e que não é mais apenas um fantasma como foi nos últimos dez anos.

E, em segundo lugar, há uma grande transformação na comunicação daqueles que são os valores fundamentais e os pilares desta esquerda. É uma esquerda que não se enrola mais em discursos que não falam a ninguém, mas que começa a falar de coisas e nos modos que, pelo contrário, interessam a todos. Corbyn, por exemplo, tem claramente uma história e um percurso muito diferente em relação ao Podemos, porque fez uma escolha estruturalmente diferente, que foi a de permanecer dentro de um partido tradicional. Contudo, demonstrou que renovando a linguagem, a maneira de fazer campanha, recuperando uma série de tradições que tinham sido abandonadas, como a de ir de porta em porta ou colocar mesas nas calçadas, faz reviver concretamente a esquerda europeia nas ruas. E não é uma presença somente de discursos, a partir dos grandes palácios do poder. Nisto se assemelha ao Podemos, ainda que a história dos dois movimentos seja totalmente diferente.

No entanto, esta esperança na Europa também havia sido vivenciada com o Syriza, na Grécia, e foi totalmente esmagada. Inclusive, houve vários representantes desta nova esquerda europeia que acusaram o governo grego de traição.

Obviamente, é impossível garantir a não repetição de situações como a da Grécia. Para além das responsabilidades políticas do primeiro-ministro Tsipras ou do Syriza, que fizeram escolhas que poderiam ter sido diferentes, não me sinto no poder de fazer um julgamento tão duro. Além disso, eu aplicaria o termo traidor a outros. Para entender o [caso] da Grécia é necessário pensar que existem na Europa forças que acabam se impondo. Quanto mais uma alternativa causa medo, elas se tornam mais ameaçadoras. Evidentemente, para essas forças esmagar Tsipras poderia ser algo útil, importante e fundamental. O que, sim, compreendo é que esse fracasso é algo do qual temos que aprender. Ao invés de simplesmente condenar, é necessário discutir para ver onde errou, se errou, e o que poderia ter sido feito de maneira diferente, sem perder consenso e adesão nas massas, o que foi, para mim, o grande problema em relação ao Syriza.

O que, sim, sei é que nós, na Itália, pior não podemos ficar. Sei que não é muito ortodoxo em termos de comunicação em plena campanha, mas, aqui, estamos no ano zero da esquerda. Existimos em realidades e movimentos microscópicos e locais que não falam entre si, não incidimos. O parlamento não será uma solução, mas para nós pode ser um instrumento para melhorar nossa situação e nos aproximar do que acontece no restante da Europa. Caso se consiga, talvez virão da União Europeia para punir e reprimir, assim como fizeram com o Syriza, mas isso é algo que qualquer um que tenha um pensamento, não digo revolucionário, mas ainda que seja transformador, precisa levar em conta.

Percebo que não veem na União Europeia um amigo…

Em nada. E não se trata de um preconceito. As políticas da União Europeia nos últimos anos foram muito antipopulares. Conduziram os Estados a um corte radical do gasto social para cumprir com as normativas impostas sobre o déficit. A União Europeia não é um mal em si. Eu penso em uma Europa solidária, dos povos. Estou convencida de que é absurdo se fechar em uma ideia nacionalista, segundo a qual se não gostamos da União Europeia temos que voltar aos velhos estados-nação, é anacrônico. Contudo, a União Europeia do modo como está hoje é antipopular, liberticida. Piorou as condições de vida e de trabalho dos italianos e não só. A distância entre ricos e pobres na Itália aumenta a cada ano. Há alguns poucos que são cada vez mais ricos e muitos que se empobrecem cada vez mais. E isto é claramente responsabilidade dos governos nacionais, mas também das normativas que baixam em nível europeu. Sobre esse debate temos as ideias muito claras, o problema não é o conceito de Europa unida, mas, sim, o que realizou nestes últimos anos.

Muitos líderes da esquerda europeia tomaram como modelo a construção dos governos populares e de esquerda latino-americanos, nos últimos anos. Que debate vocês fizeram a respeito destas experiências?

A América Latina é para nós a inspiração com a “i” maiúscula. Independente de que possam ser consideradas experiências mais ou menos acabadas ou alcançadas, ou que possam ter momentos de estagnação. Especialmente a experiência venezuelana pode ser considerada a nossa principal inspiração. Em primeiro lugar, em relação ao poder, ou seja, a ideia de que não existe um aut-aut, uma escolha definitiva entre uma construção de baixo ou de cima, mas que é possível, no cruzamento entre essas duas formas de construção política, criar o que nós chamamos poder popular. Ou seja, representação e poder territorial. Nesse sentido, acredito que a Venezuela, independente do resultado dessa experiência, é um exemplo a partir da perspectiva de sua construção. Nós, aqui, em Nápoles, organizamos muitas iniciativas de divulgação do processo venezuelano, não só porque o que chega na Itália está profundamente desvirtuado em relação ao que acontece lá, mas porque é o modelo de inspiração por excelência. Obviamente, não podemos reproduzir o mesmo na Itália. Cada realidade social tem suas especificidades, mas o modelo organizativo que nos inspira é esse.

O movimento antagonista italiano sempre foi muito alérgico às instituições. E sempre foi muito crítico aos partidos de esquerda no parlamento. O panorama eleitoral na Itália parece se encaminhar para um parlamento sem maiorias, assim como na Espanha, há pouco mais de um ano, obrigando todas as forças políticas a dialogar para tecer alianças e constituir um executivo. De acordo com a história de seus movimentos, e o programa que apresentaram, não parece haver espaço para alianças.

Não. Não há possibilidades. Não somos compatíveis. Já dissemos isso claramente. E é algo que vai contra a tendência geral, já que a reforma eleitoral e o debate de campanha nos obrigam a fazer propostas pensando com quem nos aliar após o dia 4 de março. É algo transversal em todos os partidos, à direita e à esquerda.

No entanto, desde o surgimento do Potere al Popolo, vocês tiveram palavras de elogio a alguns representantes da “política de palácio”, como ao prefeito de Nápoles, Luigi de Magistris.

De Magistris tem uma história que seguramente não é a nossa. De fato, quando se apresentou para seu primeiro mandato, nós não o olhávamos com bons olhos. Nunca se declarou comunista, muito menos parte dos movimentos sociais. Ao contrário, era um ex-juiz que se apresentava com outro ex-juiz, com uma forte marca legalista. Nós desconfiávamos muito. Hoje, não o apoiamos abertamente, não entramos no movimento político que criou, não temos nenhuma relação de continuidade com o que fez, mas reconhecemos que o fato de ter tido na cidade de Nápoles um possível interlocutor nas instituições, fez com que uma série de coisas pudessem ser realizadas. Há muitos exemplos, especialmente no que se refere à luta contra a pobreza, à acolhida de migrantes, que são temáticas que nos interpelam diretamente. Houve inquietações provenientes de baixo, das bases, que foram recebidas e elaboradas. Não todas e não do todo. Quando foi o caso de se opor, nunca nos retiramos. Neste sentido, para nós, Nápoles foi uma espécie de laboratório. Foi a demonstração de que, em alguns casos, pode haver uma atividade política de base, mas havendo alguém na instituição que ao menos não é hostil com você, pode acontecer alguns resultados. Não é a solução, mas ajuda.

Qual foi a reação dos demais movimentos sociais diante de sua aposta?

Quando nós viemos com a proposta de uma lista sem muitas expectativas, em novembro, esperávamos que desabassem críticas e que fossem levantados os escudos de boa parte dos movimentos de esquerda. Justamente porque viemos desse mundo, sabemos como se percebe em geral a questão da representação institucional. Pelo contrário, isso não aconteceu. Claramente, houve aqueles que se somaram de início para participar e ajudar, e outros preferiram ficar à margem. Mas, houve aqueles que, a partir dos movimentos, expressaram sua visão abstencionista, como definição estratégica, não só tática, e que, no entanto, reconheceram publicamente o valor de nossa proposta e nossa credibilidade política.

Ou seja, dentro do movimento não levantaram os escudos que tínhamos imaginado. Isto provavelmente porque em vários lugares se gerou a consciência de que, efetivamente, a situação é tão grave que é necessário usar todos os instrumentos possíveis. Além disso, conseguimos ter uma certa legitimidade que impede que sejamos acusados de oportunismo, que é a crítica clássica que se move a tais tipos de iniciativas. Não construímos nossa proposta ao redor dos personagens e nomes, e ninguém hoje diz que fazemos o que fazemos para conseguir uma cadeira por interesses pessoais.

Agora, se isto pode trazer resultados, é preciso pensar de outra maneira, para além do eleitoral. Só o fato de ter realizado 150 assembleias, em 150 cidades, para discutir programa e candidatos, ter contado com exposição nacional e internacional e ter construído contatos e relações com experiências e movimentos de base é, em si, um bom avanço em relação a como estávamos há alguns meses. Se, além disso, conseguirmos superar os 3%, melhor ainda. Teremos pessoas no parlamento que sem permutar também conseguirão levar lá para cima uma série de reivindicações que, normalmente, são vedadas. Principalmente, as que têm a ver com o trabalho.

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Um comentario para "Itália: uma nova esquerda à vista?"

  1. josé mário ferraz disse:

    Nenhuma forma de administração pública será capaz de proporcionar bem-estar social porque o defeito e exterior a ela. Está é nas pessoas que a executam. A lembrança dos tempos do bicho que já fomos e que ainda faz parte de nossa personalidade faz com que o venha a mim e aos meus prevaleça e os outros que se danem. Ou não é isto o que temos?

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