Intervenção no Rio: à deriva

Dois meses depois, intervenção federal-militar no Rio ainda não tem programa de ação. Violência aumentou: dobro de chacinas em relação a 2017

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Por Ponte Jornalismo

Passados os primeiros 60 dias do decreto que colocou o Rio de Janeiro sob intervenção federal, os primeiros resultados aferidos pelo ‘Observatório da Intervenção’, formado por especialistas e ativistas na área de direitos humanos, é de que a operação como um todo aparenta estar à deriva, sem impacto real na diminuição da violência no estado, que é tradicionalmente visto e usado como laboratório na área de segurança urbana. Tanto é que o relatório foi batizado de “À deriva: sem programa, sem resultado, sem rumo”, lançado na quinta-feira 26 de abril,  quando a intervenção no Rio completou dois meses.

A iniciativa é fruto da criação e trabalho conjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC/UCAM) e de iniciativas parceiras como o DefeZap, Fogo Cruzado, OTT-RJ e pelo menos 20 outros grupos. Os dados apresentam uma visão em perspectiva da intervenção, que comprova aquilo que os moradores do Rio têm vivido no cotidiano, como fichamentos ilegais e até mesmo revista de crianças por parte dos militares. Um dos dados destacados pela coordenadora do Observatório, Silvia Ramos, foi o aumento de aproximadamente 20% no número de tiroteios após o anúncio da intervenção – foram, ao todo, 1.502 troca de tiros, frente às 1.299 nos dois meses pré-intervenção. “Pela primeira vez estamos fazendo uma análise diária, acompanhando tudo que vem acontecendo de forma detalhada” declarou. Esse primeiro relatório foi dedicado à vereadora Marielle Franco (Psol), assassinada no dia 14 de março, junto com o motorista Anderson Gomes.

Do relatório “À deriva: sem programa, sem resultado, sem rumo”, Observatório da Intervenção

No total, desde o início do decreto da intervenção, foram feitas 70 operações em 33 locais no Rio de Janeiro, contabilizando o uso de mais de 40 mil agentes. 140 armas foram apreendidas e 209 pessoas morreram nas mãos da polícia, que por sua vez perdeu 19 agentes. Depois da cidade do Rio de Janeiro – que teve 892 tiroteios, com 114 mortos e 105 feridos no período -, aparece São Gonçalo – com 160 ocorrências com 53 mortos e 31 feridos – e na sequência Belford Roxo, município que enfrentou 123 trocas de tiros, totalizando 19 mortos e 12 feridos.

Outra constatação apresentada foi o aumento do número de chacinas, que têm três ou mais mortos. Foram 12 nos últimos dois meses, totalizando 52 vítimas. No mesmo período do ano passado foram seis chacinas, com 12 mortos.

A decisão do presidente Michel Temer de colocar a Segurança Pública do estado sob intervenção aconteceu depois que o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, admitiu, há pouco mais de dois meses, a incapacidade de sua gestão de combater o crime organizado. “Só com a ação da polícia militar e civil não estamos conseguindo dar segurança à população”, afirmou na ocasião.

Esse descompasso entre o que se prometia e o que vem sendo efetivamente colhido demonstra, para Silvia Ramos, a necessidade de uma reflexão urgente por parte dos interventores. “Até agora sequer sabemos quanto vai custar essa intervenção”, disse. “Mas além disso, qual é o programa? O que que a intervenção espera? Até agora isso não está claro”, critica.

O relatório destaca que, semanas depois de tomar posse, o interventor anunciou que sua equipe havia calculado os custos da intervenção em R$ 3,1 bilhões. Mas tem um detalhe: R$ 1,6 bilhões desse montante seriam destinados a quitar dívidas de 2016 e 2017; e R$ 1,5 bilhões, para o custeio de ações e despesas de 2018. Ainda assim, o Observatório critica o fato de haver a destinação de verba, sem contudo, haver um plano para o uso desses recursos. “O Rio de Janeiro é o segundo estado em termos de investimento per capita em segurança pública, superado apenas por Roraima”, aponta outro trecho do levantamento.

Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), exposta no relatório, mostra os maiores temores de quem vive no Rio: os dois primeiros, que correspondem a 92% das respostas cada, são ser atingido por bala perdida e ficar no meio de tiroteio entre polícia e traficantes. Ainda assim, os especialistas envolvidos na pesquisa apontam, mais uma vez, que o Rio não figura entre os estados mais violentos do país, justamente para refutar a construção de narrativa de que a violência estava desenfreada e isso justificaria a intervenção. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017, o estado está em 11º lugar em relação aos homicídios – no Rio, a taxa é de 37,6 por 100 mil habitantes, contra 60 por 100 mil em Sergipe.

Coleta de dados pode ter ajuda da população

O “Observatório da Intervenção” também tem um importante aspecto de criação coletiva, com o público podendo alimentar a base de dados. “É imprescindível que a sociedade também participe” comentou Cecília Oliveira, uma das responsáveis pelo aplicativo Fogo Cruzado, que faz coletas de dados referentes à violência armada no Rio. Para a jornalista, isso cria uma base para que se possa cobrar o Estado, mesmo que este relegue certos dados. “Desde 2012, o Instituto de Segurança Pública não contabiliza números de balas perdidas por exemplo”.

No caso do aplicativo Defezap, parece que as pessoas já estão se acostumando ao ato de denunciar. O coordenador Guilherme Pimentel comentou que a equipe recebeu o triplo de denúncias nesses últimos dois meses comparado ao mesmo período de 2017.

Para Mônica Francisco, representante do mandato de Marielle Franco, esse trabalho coletivo do Observatório ajuda a desnaturalizar a violência cotidiana e a violência estatal, as quais tradicionalmente atingem as populações periféricas. “Como favelados e faveladas conseguimos entender muito bem a frieza desses dados. As conclusões feitas neste relatório nós vivemos na pele todos os dias”, afirma Mônica.

Rio tem histórico de ações das forças armadas

Desde 2008 o Rio viveu 12 situações no qual as Forças Armadas foram chamadas à ação, o que é chamado de GLO (Garantia da Lei e da Ordem): em outubro de 2008 (eleições municipais), de dezembro de 2010 a junho de 2012 (Ocupação do Complexo do Alemão), julho de 2011 (V Jogos Mundias Militares), junho de 2012 (Rio + 20), outubro de 2012 (eleições municipais), julho de 2013 (Jornada Mundial da Juventude), julho de 2014 (Copa do Mundo), de abril de 2014 até junho de 2015 (Ocupação do Complexo da Maré), agosto de 2016 (Jogos Olímpicos), outubro de 2016 (eleições municipais), fevereiro de 2017 (votação do pacote de austeridade), e a partir de julho passado, a implantação do Plano Nacional de Segurança no Rio. Mas essas ações eram previstas no artigo 142 da Constituição Federal e pela Lei Complementar 97, de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001, que davam às Forças Armadas poder de polícia para apoiar operações pontuais de combate ao tráfico de drogas e roubos de carga, por exemplo.

O decreto que instituiu a Intervenção Federal, no entanto, se ampara nos artigos 144 e 145, que tratam da gestão da segurança pública – o que inclui traçar estratégias e destinar recursos – de um estado da Federação.

Não à toa, o secretário de segurança do Estado na época, Roberto Sá, foi exonerado, e o general Walter Souza Braga Netto foi alçado como interventor, que desde então vem tendo poderes de chefe de governo para atuar na área para a qual o decreto se refere, que é a da segurança pública, sendo submetido apenas ao presidente da república.

O relatório do Observatório da Intervenção apresenta alguns gráficos da evolução de mortes violentas nos últimos 35 anos e aponta que o pior momento ocorreu nos anos 1990, no governo de Marcello Alencar. “Com a secretaria de Segurança sob o comando de um oficial do Exército, o Coronel Newton Cerqueira, a taxa de homicídios chegou a 60 mortes por 100.000 habitantes. Entre outras medidas, a secretaria estimulava a execução de criminosos “procurados”. Policiais envolvidos na prisão ou morte de suspeitos recebiam uma gratificação por bravura, incorporada ao salário na forma de pecúlio: era a ‘gratificação faroeste’”, aponta o texto.

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