Governador Valadares sob emergência hídrica

Reportagem na periferia de cidade atingida por lama da Vale. Torneiras incertas. Água turva e malcheirosa. Alergias e coceiras, em que se atreve a um banho. Dura disputa pelas garrafas PET

Por Débora Lopes | Fotos: Felipe Larozza, na Vice

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Reportagem na periferia de cidade atingida por lama da Vale. Torneiras incertas. Água turva e malcheirosa. Alergias e coceiras, em que se atreve a um banho. Dura disputa pelas garrafas PET

Por Débora Lopes | Fotos: Felipe Larozza, na Vice

“Que Deus ajude nossa cidade a voltar a ser o que era antes”, clama um voluntário que, na última sexta-feira (19), distribuía água mineral no Morro do Querosene, ponto conhecido pelo alto número de homicídios e tráfico de drogas na cidade de Governador Valadares, Minas Gerais.

A morte apocalíptica do Rio Doce – provocada pelo rompimento das barragens em Mariana – unia voluntários e moradores da comunidade, que, de mãos dadas e debaixo de chuva, viviam o luto da principal fonte de abastecimento de água da região. Nesse momento, a apelação final era Deus, já que a Vale, empresa responsável pela atrocidade ambiental cometida em Mariana, pouco tem feito para reparar o estrago que causou no meio-ambiente e na vida de milhares de pessoas.

A ação que acompanhamos era encabeçada pelos grupos Trupe do Bem e S.O.S. Rio Doce, que, nos últimos dias, têm, incansavelmente, distribuído doações de garrafas, galões e fardos de água pela cidade. O trajeto da noite percorreu também a Comunidade do Carapina e o bairro de Monte Carmelo – locais de difícil acesso por conta da hostilidade do tráfico, disseram os voluntários. E a chuva, tão incomum nos céus do município nos últimos meses, não deu trégua.

DESTA ÁGUA NÃO BEBEREI

Recentemente, os valadarenses passaram quase uma semana sem ver uma gota de água sequer caindo de suas torneiras. Mas a reviravolta haveria de chegar. E chegou quando, munida de um copo plástico, a prefeita Elisa Maria Costa (PT) apareceu em um programa de TV ao vivo saboreando a água recém-tratada que voltou a circular pelo município na última segunda-feira (16) desde que o Rio Doce se foi. “A água já está em condições de ser bebida e não existem metais tóxicos”, afirmou em sua página oficial no Facebook. “Não precisam ter receios.”

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Partindo do princípio químico e linguístico que afirma que a água não possui cor, cheiro ou sabor, parte dos moradores de Governador Valadares discorda do que foi confirmado pela Saae (Serviço Autônomo de Água e Esgoto) e reiterado pela prefeita. De acordo com relatos ouvidos pela VICE (que você pode ler ao final do texto), a água encanada possui cheiro forte, apresenta coloração amarelada e provoca coceiras e alergias. “Não estamos bebendo. Não temos coragem”, afirma Kênia Rodrigues, moradora da comunidade do Carapina que se recusa a degustar tal líquido.

É através de doações de água mineral que chegam de diversas partes do país, assim como da Prefeitura de Governador Valadares e da Vale, empresa responsável pelas barragens rompidas em Mariana, que os habitantes das regiões mais pobres da cidade têm conseguido se manter.

Comprar garrafas ou galões de água ficou ainda mais difícil quando comerciantes triplicaram o valor dos produtos. Um galão que, normalmente, custaria R$ 10 passou a ser vendido por R$ 30. A Polícia Militar mineira afirmou à VICE que, após receber denúncias, chegou a prender comerciantes por infringir a Lei 1.521 – contra a economia popular.

Não fossem as doações, a periferia – desprovida de poços artesianos, mais comuns entre a classe média-alta e campestre – não teria outra escolha senão enfrentar o que lhes é ofertado através da torneira: uma água insólita. O futuro dos moradores é incerto: não se sabe quando a situação da água será resolvida, quiçá por quanto tempo as doações serão disponibilizadas.

Para entender melhor a situação da periferia de Governador Valadares, a VICE conversou com algumas pessoas que enfrentaram a água caindo do céu para garantir um fardo de água mineral dentro de casa.

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Kênia de Souza Rodrigues

Você nasceu aqui em Governador Valadares?

Sim. Há 32 anos moro aqui no Carapina.

Como está a situação da água?

Agora está amenizando porque as pessoas tem trazido água pra gente. Está melhorando. E, agora também tem água nas torneiras. Dá pra arrumar a casa, lavar a roupa. Só não estamos bebendo. Não temos coragem.

Por quê?

O cheiro é muito forte. Agora está clareando, mas o cheiro está forte. Ainda não dá pra beber, não.

Como sua família faz quando não recebe as doações? Vocês compram água?

Não dá. É difícil demais.

Se não for a doação…

Só Deus. Tomamos pouca água pra dar certo. Tem que economizar o máximo possível.

Em quanto tempo você acha que as coisas vão voltar ao normal?

Vai demorar um bom tempo.

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Adirson Costa Junior

Mora aqui há muito tempo?

A vida toda.

Você trabalha?

Sou porteiro.

Como está a água?

Tem chegado pra nós, graças a Deus.

Como está a água que sai da torneira?

Difícil.

Dá pra beber?

Não. O cheiro está muito forte. Você toma banho e os olhos ardem. E tem algumas pessoas que tomam banho e ficam com coceira.

O que você acha dessas pessoas se mobilizando e trazendo doações de água?

É muito louvável.

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André de Almeida, voluntário

Com o que você trabalha?

Sou bancário e empresário. E trabalho como voluntário na Trupe do Bem.

O que você veio fazer aqui?

Nosso objetivo hoje é fornecer água pra onde o município não está oferecendo, onde o município não alcança. As extremidades e até mesmo as partes centrais.

Onde estamos hoje?

Na Comunidade do Carapina. É uma comunidade carente, muito pobre. Estamos aqui com o apoio da Polícia Militar. Se não fosse esse apoio, não poderíamos estar aqui.

Por quê?

De certa forma, é um lugar em que o tráfico existe e domina. Daqui pra trás, não conseguimos subir mais. A não ser com permissão do próprio tráfico.

Qual é a importância das pessoas de todo o país continuar ajudando e doando água?

As doações estão chegando à região de Mariana e o Estado está auxiliando. Mas o caminho que o Rio Doce percorre não recebe auxílio nem a liberação do FGTS pra poder fazer compra de água.

[Essa água] não é pra consumo direto. A Prefeitura alega que sim, mas ela pode alegar o que quiser. A questão é comprovar com dados químicos – o que não está acontecendo. Não temos assistência da Prefeitura ou do Estado. Então, o objetivo do grupo aqui é ajudar a comunidade da melhor maneira possível.

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Maria Lúcia Ferreira

Com quantas pessoas você mora?

Com quatro.

Como está a água pra vocês?

Difícil. A água do Saae não está tão limpinha como era.

Mas eles disseram que está própria para o consumo.

Não. Está escura, meio turva, amarela.

E o cheiro?

Não está tão mal.

As doações ajudam?

Bastante.

O preço da água subiu?

Subiu, mas chamaram a polícia e eles [comerciantes] voltaram com o preço normal de novo.

Quanto custa um galão de 20 litros?

Dez reais.

E por quanto estavam vendendo?

Por R$ 30.

E como vocês estavam fazendo?

Uai. Chamaram a polícia e eles baixaram o preço de novo.

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Marcelo Alves

Como está a situação da água?

Crítica. O povo está desesperado procurando água.

Quando abre a torneira, o que é que sai?

Água imunda. Suja, fedendo. Cheiro muito forte.

A Saae falou que a qualidade da água está boa pra consumo.

Eu não confio, não.

E as doações?

São muito importantes porque temos criança. Nós, adultos e velhos, até conseguimos nos virar. Mas com as crianças é mais difícil.

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