Como as polonesas derrotaram a lei anti-aborto

Convocadas de forma quase espontânea, manifestações reuniram multidões em mais de 60 cidades. Governo recuou. País, de forte influência católica, restringe direitos das mulheres desde fim da época socialista

Por Juliana Domingos de Lima, no Nexo

 

161006-polonia

.

Convocadas de forma quase espontânea, manifestações reuniram multidões em mais de 60 cidades. Governo recuou. País, de forte influência católica, restringe direitos das mulheres desde fim da época socialista

Por Juliana Domingos de Lima, no Nexo

Vestidas de preto, milhares de mulheres tomaram as ruas de mais de 60 cidades polonesas na segunda-feira (3). Elas protestavam contra uma mudança na legislação que restringiria ainda mais o direito ao aborto no país.

O movimento foi tão massivo que fez o governo polonês recuar nesta quarta-feira (5). O ministro da ciência e da educação superior, Jarosław Gowin, declarou que o protesto deu uma “lição de humildade” aos governantes.

A afirmação indica que o governo conservador irá retirar o apoio ao projeto de lei que, na prática, baniria completamente o aborto legal do país.

greve-mulheres-polonia

Organização relâmpago

O movimento foi articulado em apenas uma semana pelas redes sociais. A organização relâmpago contou com posters e panfletos caseiros e outras iniciativas locais, como sair de carro divulgando o ato de paralisação nacional com um megafone.

Na capital Varsóvia, a prefeitura estimou em cerca de 30 mil o número de pessoas que se reuniram na Castle Square.

Marta Lempart, advogada de 37 anos que convocou a manifestação na cidade de Breslávia, explicou ao Nexo que o evento no Facebook contava com 20 administradores, parte de um comitê nacional de lideranças locais, e mais alguns milhares de pessoas independentes que trabalharam localmente.

“Somos [os membros desse comitê] de organizações diversas, mas não são as organizações que fazem o protesto. São mulheres furiosas. Há dezenas de mulheres que não são parte de nenhuma organização, são donas de casa, mulheres corajosas de cidades pequenas que organizaram um ato pela primeira vez na vida” Marta Lempart Advogada, membro do Comitê pela Defesa da Democracia (organização da sociedade civil fundada em 2015 para fazer oposição ao governo do PiS) em entrevista ao Nexo

O perfil das manifestantes, segundo o depoimento da polonesa Olga Siemieńczuk ao site “Broadly”, era diverso: apesar de incluir muitas estudantes universitárias e do ensino médio, havia também mulheres mais velhas e de meia idade, inclusive com crianças pequenas.

“Participei de todas as manifestações antes dessa contra a lei anti-aborto. Há quase 20 anos participo na marcha feminista do 8 de março. No começo, éramos um grupo muito pequeno, e o feminismo era visto como extremismo na Polônia. Felizmente, as coisas estão mudando e cada vez há menos mulheres que não querem ser vistas e reconhecidas como feministas” Malgorzata Sadowska Jornalista e crítica de cinema polonesa, 41 anos , ao Nexo

O motivo do protesto

O projeto de lei levado ao parlamento para discussão pretende endurecer ainda mais a legislação polonesa que regulamenta a interrupção de gravidez. Ao lado da Irlanda e de Malta, a Polônia já tinha uma das leis de aborto mais restritivas da Europa.

  • Gravidez de risco para a mãe
  • Casos de estupro ou incesto (o crime precisa ter sido provado)
  • Má formação do feto

A legislação polonesa que regula o aborto é bem semelhante à brasileira. Por aqui, o procedimento é legal em caso de risco de vida para a mãe, de estupro ou anencefalia (ausência total ou parcial de cérebro no feto). Assim como na Polônia, o acesso ao aborto legal no Brasil é prejudicado pela desinformação dentro do próprio sistema de saúde, pela burocracia e  pelo estigma.

Em 2015, um projeto de lei do ex-deputado Eduardo Cunha, que pretendia dificultar o acesso à interrupção de gravidez em casos de estupro, também levou as brasileiras a protestarem.

O retrocesso iminente na lei polonesa teve origem em uma campanha feita pela Igreja Católica com um movimento da sociedade civil chamado “Stop Abortion”, que recolheu mais de 400 mil assinaturas, com o objetivo de banir o aborto em todos os casos.

Com a mudança, mulheres e médicos implicados judicialmente na realização de abortos clandestinos poderiam ser condenados a até cinco anos de prisão.

A campanha obteve o apoio da primeira-ministra Beata Szydlo e causou a primeira onda de protestos no país, em abril de 2016, na qual manifestantes muitas vezes empunhavam cabides de arame para simbolizar os métodos a que mulheres precisam recorrer para abortar clandestinamente.

O partido de direita a que pertence a primeira-ministra em exercício, chamado Lei e Justiça (PiS), chegou ao poder em 2015,  em uma escalada de governos conservadores na Europa central, e conquistou maioria absoluta no parlamento.

Desde então, o governo manifestou a intenção de retirar o país da Convenção de Istambul, instância europeia de prevenção e proteção das mulheres contra a violência doméstica, e vem reforçando em seu discurso o papel tradicional da mulher na família, em detrimento de direitos civis, dentre eles os reprodutivos.

O regime soviético, a Igreja e as mulheres 

A lei de aborto atual foi elaborada no período posterior à queda da União Soviética, em 1989, durante o qual as mulheres tinham acesso à interrupção de gravidez pelo serviço de saúde.

Apesar da legalidade, questões como contracepção e autonomia sobre o próprio corpo, ligadas aos direitos reprodutivos, não estavam em questão no debate público.

Resultante de um acordo entre o governo liberal em vigor em 1993 e a Igreja Católica, a lei que prevê o aborto legal em casos determinados também permite que médicos se neguem a realizar o procedimento caso considerem que vai contra crenças e valores pessoais, a chamada “obstrução de consciência”.

De acordo com um relatório de 2014 da Federação Polonesa pelas Mulheres e pelo Planejamento Familiar (Federa), entregue ao conselho de direitos humanos da Organização das Nações Unidas, as mulheres polonesas que precisam realizar um aborto – mesmo em casos em que ele é legal – enfrentam estigma, intimidação e falta de informação por parte de funcionários do sistema de saúde e da igreja.

As liberdades esperadas com a queda do regime soviético não trouxeram mais direitos para as mulheres. Na verdade, a igualdade de gênero no país piorou: a desigualdade salarial entre homens e mulheres aumentou, e o acesso delas à educação e creches (frequentemente vinculadas aos locais de trabalho no período soviético) diminuiu, segundo uma reportagem do jornal britânico “The Guardian”.

A Igreja se fortaleceu ficando ao lado da população pelo fim do regime, e o apoio popular ganho nesse momento lhe deu espaço e oportunidade para defender a agenda anti-aborto a partir dos anos 1990, explicou a advogada e ativista Karolina Wieckiewicz ao “Broadly”.

Crise, nacionalismo e o papel da mulher

A ameaça aos direitos reprodutivos das mulheres tem a ver com o contexto de nacionalismo, xenofobia e conservadorismo crescentes na Europa, diz a escritora polonesa Agnieszka Graff.

Para ela, a questão de gênero não tem só a ver com papéis e estereótipos designados a homens e mulheres, mas tem ligações complexas com a política, a história de um país e os processos econômicos.

“Em tempos de crise e ansiedade, as pessoas tendem a buscar um arranjo tradicional entre os sexos. As mulheres são associadas à estabilidade, ao passado e à tradição”, diz.

Para ela, quando a identidade coletiva está em perigo, elas são forçadas a assumir o papel de dar continuidade à cultura, frequentemente contra sua vontade.

“O feminismo polonês é um fenômeno predominantemente pós-1989 [data da queda do muro de Berlim]. (…) há uma diferença enorme no estado dos direitos reprodutivos [em relação aos EUA]. Não temos esse luxo. Para nós, o filme ‘Juno’ é um conto de fadas utópico. Uma adolescente grávida na Polônia não tem escolha, pelo menos não legalmente.”Agnieszka Graff. Escritora e feminista polonesa, em entrevista ao site da Universidade de Boston

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *