A crise da água e as possíveis soluções naturais

Relatório da ONU aponta emergência global: crescem desabastecimento e risco de guerras hídricas, enquanto poder econômico apodera-se das fontes. Saída inclui saberes ancestrais

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Por Sucena Shkrada Resk, no blog Cidadãos do Mundo

Informe Mundial das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos 2018, lançado há poucos dias, tem como mote “soluções para a água baseadas na natureza” (SbN). Este é um conhecimento milenar, mas que conceitualmente tem sido desenvolvido desde 2002. Esta constatação não é por acaso: no período do Antropoceno,  “predar” ainda ganha rounds diante do “conservar”. Então, a que e a quem apelar? Ao próprio ecossistema, que em sua infinita sabedoria no conceito de gaia, em sua organicidade viva, traz processos regenerativos. Entretanto, para que o processo ocorra, a atitude proativa do ser humano continua crucial. Essa é a parte que nos cabe como constitutiva do meio ambiente e como sujeitos políticos.

As propostas colocadas à mesa no informe da ONU são diversas e muitas já conhecidas em diferentes documentos anteriores. Entre as recomendações, que estão embasadas numa perspectiva de infraestrutura verde, estão o desenvolvimento prático da ecohidrologia (diálogo permanente de adoções respeitando a hidrologia + biota), de restauração e engenharia ecológica e de restauração de paisagem florestal. Também são recomendadas a redução de riscos de desastres baseada em ecossistemas, serviços ecossistêmicos baseados no contexto das mudanças climáticas, tratamento de águas residuais, adoção da chamada economia circular (que preconiza o mínimo de desperdício) e da agricultura de conservação, que é caracterizada pelo mínimo de perturbação no solo e a prática de rotação de culturas. Para alavancar essas ações, são sugeridas práticas como a de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) e a criação de fundos para a conservação da água, entre outros.

Não podemos negar que vivemos um cenário perturbador. A água é pivô de conflitos internacionais em ascendência. Há pelo menos 260 bacias fluviais em quase 150 fronteiras internacionais, o que esquenta uma atmosfera de construção de guerras. Quando analisamos que 30% da superfície terrestre é coberta por vegetação/florestas, mas que 65% desta área estão degradadas (dados de 2010), os ingredientes para esta situação de instabilidade aumentam. As áreas úmidas, rios e lagos, cobrem somente 2,6%. As ameaças para a manutenção do equilíbrio ecossistêmico, neste contexto, são de toda ordem: erosão, perda de nutrientes, salinização e sodificação, perda de biodiversidade, contaminação, acidificação e compactação, entre outras.

Hoje, mais de 2 bilhões de pessoas não têm acesso à água potável e mais do dobro não conta com acesso aos serviços de saneamento seguro em uma sociedade mundial de 7,7 bilhões de cidadãos, destaca o documento. Com o rápido crescimento populacional até o ano de 2050, poderemos chegar a 10,2 bilhões de indivíduos, com dois terços vivendo em cidades. O maior número de cidadãos estará nos continentes africano e asiático. Como suprir esta necessidade, exercitando o mesmo modelo de desenvolvimento vigente, que é discriminatório?

O descompasso é crescente. Nos últimos cem anos, o uso global da água foi multiplicado por seis e continua crescendo a uma taxa de 1% ao ano. O quebra-cabeças está nos usos agrícola, industrial e doméstico, que estão comprometendo tanto as águas subterrâneas como as superficiais. Quando vimos no recorte geopolítico quais são os maiores consumidores hoje dos recursos subterrâneos, percebemos como o problema é de uma complexidade considerável. São Índia, EUA, China, Irã e Paquistão, que representam 67% das extrações totais mundiais e a utilização deste recurso no planeta tende a aumentar e chegar na casa de mais 39% até 2050. Atualmente um terço desses ecossistemas está sob perigo. Já a escassez de águas superficiais poderá atingir 5,7 bilhões de cidadãos, neste mesmo período.

Segundo o informe, estima-se que mundialmente 80% das águas residuais industriais e municipais são liberadas ao meio ambiente sem nenhum tipo de tratamento prévio. É preciso frisar – 80%. Não é difícil imaginar o que isso significa no dia a dia das atuais e futuras gerações. Sede, fome, doenças e morte. Esta equação não faz parte de um roteiro de ficção científica e se olharmos com maior interesse, já detectamos este quadro em todos os continentes, incluindo o Brasil e países dos blocos desenvolvidos, como no continente europeu.

Na Europa, por exemplo, já observam o excesso de nitrato nas águas, acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e do fósforo. Outra preocupação é a presença de herbicidas e fungicidas que são carreados aos corpos d`água. Para lembrar – o Brasil continua a ser o maior consumidor de agrotóxicos no mundo. O que dizer de nossas águas?

Já o aceleramento das mudanças climáticas começa a ocasionar grandes processos de secas e de inundações. A desertificação já atinge 1,8 bi de pessoas, e está relacionada à categoria mais importante que causa mortalidade e impacto socioeconômico. As inundações têm aumentado consideravelmente no Chile, na China, no Oriente Médio, na África do Norte e na Índia. Desde o ano de 1992 tem sido feito o registro de que inundações, secas e tormentas têm atingido 4,2 bilhões de pessoas e os danos estão na casa dos US$ 1,3 bi, sendo que 63% são relacionados às águas (dados até 2012).

É preciso respirar, para ganhar fôlego e refletir se conseguiremos atingir as metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Uma delas, a 6,6, diz: “Até 2020, proteger e restaurar ecossistemas relacionados com a água, incluindo montanhas, florestas, zonas úmidas, rios, aquíferos e lagos”. Será possível?

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