Folhetim

“Você não vê que sublime novidade, ela deixar o executivo emproadinho, que pensa que cultura é música clássica, por um pau-de-arara”?

Por Regina M. A. Machado, no Diversos-Afins

Segunda ao meio-dia:
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– Oi, querida.

– Oi. Foi bem de aula? … Sabe a nossa vizinha, D. Margarida?

– D. Margarida? Não, não sei.

– Acho que ela até é sua colega de departamento…

– Ah, não é não, mas já sei quem é. É uma figura da comunicação, estruturalista de carteirinha em 2011, imagine.

– Pois é, parece que ela fugiu com o seu Matias.

– Fugiu? Com o… com quem? Que história maluca é essa? Em vez de reportagem, você agora inventa folhetins para os jornais?

– Não, nem precisa. É um drama deslocado no tempo, também acho inteiramente fora de moda, mas é pura realidade.

– E quem é esse seu Matias?

– O seu Matias Cearense, que vende bucha na feira, não se lembra? Ele tem uma barraca grande, com um monte de tarecos para a casa, mas nós sempre fomos clientes das buchas.

– Jamais vi nem ouvi falar desse cara.

– Ah, mas é muito chato conversar com você, você não se lembra nunca de nada nem de nenhuma pessoa real, parece que só vê o que se passa acima das nuvens das suas especulações!

– Tá, isso dito e repetido, quem é mesmo o seu Matias?

– É um homem muito simpático, bem falante, calmo… parece que ele é feirante há anos em São Paulo, tem família aqui, ninguém entende essa loucura, os amigos dele deram parte por desaparecimento…

– Pode ser isso mesmo, não?

– Não, ela deixou uma carta para a família e a mulher do porteiro já deu uma versão pessoal para o prédio inteiro.

– Ah, e como são as duas versões?

– Eu mesma não vi a carta, e a história já rolou tanto pelos andares do prédio que já deve estar revista e aumentada várias vezes. Mas resumindo, eles costumavam conversar todos os domingos na feira, desde vários anos, depois passaram a tomar caldo de cana juntos… Um dia ela descobriu que ele sonhava em voltar para um sítio perdido lá nos sertões do Cariri, plantar coisas da terra, instalar um sistema de eletricidade solar – mas só de dia, de noite cortam a luz num raio de não sei quantos quilômetros. Teu amor e uma cabana, mas sem poluição luminosa nem outra qualquer…. e com tecnologia de ponta, parece.

– Ela diz isso tudo num bilhete de despedida?!?!

– E eu sei lá? Vai ver que a mulher do porteiro é ecologista fundamentalista!… ou alguém que passou adiante achou que faltava conteúdo político numa história banal…

– Banal?!!! É a coisa mais interessante que aconteceu neste prédio em quinze anos!… é um acontecimento histórico, uma inversão das tendências migratórias históricas desde que acabaram com o massapê do nordeste no ciclo da cana-de-açúcar!…

– O que seria dos meus humildes causos sem o brilho das suas contribuições, né, bem?

– … Sem falar no valor simbólico deste adultério na contramão!… você não vê que sublime novidade representa ela ter deixado o executivo emproadinho do sul-maravilha, que nunca comeu fruita no pé e pensa que cultura é gostar de música clássica, por um pau-de-arara?… ter abandonado esta divina megalópole por um sítio que só deve ter pé-de-pau com certeza mirradinho por falta de chuva… Não sei não, acho que vou acabar gostando da D. Margarida…

– Bom, o almoço está pronto. Você pode continuar a se entusiasmar na mesa.

– Sabe que a sua historinha me deu fome? Macarrão de novo?!? Humm, deu foi vontade de uma peixada em praia do Nordeste…

– Não é macarrão, é alga, mentecapto!

No final da semana:
– Tem novidade?
– Sobre o quê?

– A D. Margarida, ora…

– Ah, o ilustre professor agora se interessa por fofoca do prédio!… pois tem sim. Ouvi uma conversa no elevador, que ela andou por aqui, que saiu uma briga tremenda lá no apartamento deles e que o que se ouvia era: “Não vou, não tem cabimento, você é louca” e coisas assim. Será que ela veio buscá-lo?

– Mas será o Benedito? Tá tudo invertido mesmo!!! Agora é o paulista que encarna os valores machistas que sustentam a família patriarcal??? E o nordestino, então, teria tido pena do marido abandonado?…. Meu Deus, que golpe no meu orgulho regional!.. O que será que ele vai fazer? Será que vai lá e acaba com os dois? Será que vai dar graças a Deus por ter se livrado daquele pau-de-virar-tripa?

– Não sei e nem dá para saber. Você já está tentando aplicar as suas estruturas narrativas num episódio da pobreza ou da caridade afetiva de gente que a gente mal conhece.

– É, não dá mesmo para imaginar, e, aliás, prefiro aguardar. Mas ganhei meu dia com a sua fantástica crônica da vida real – aguardemos o desenlace. E essas sacolas aí, amanhã é dia de feira?

– É sim. E vou ter que procurar outro vendedor de bucha.

– Mas não vai tomar caldo de cana com ninguém, não é? Estou começando a achar que feira é muito perigoso. Sabe do que mais? Vamos jantar fora: te convido para comer uma carne de sol com farinha de pau e manteiga de garrafa num restaurante que está muito bem cotado e depois a gente podia ir num forró em homenagem ao seu Matias. Tou precisando desenferrujar esta postura de computador. … Ah, eu queria me lembrar da cara dele….

(Regina M. A. Machado é doutora em Literatura Brasileira pela Sorbonne Nouvelle/Paris3 e autora do livro Fiction et café dans une vallée impériale, Paris, Editions Indigo-Côté Femmes, 2011. É pesquisadora associada ao CREPAL e seus trabalhos publicados têm se orientado para releituras da ficção de José de Alencar. Atualmente, anima oficinas de francês (ASL – ateliers sociolinguistiques) em Bonneuil-sur-Marne, onde mora)

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