Contato forçado, nova ameaça aos indígenas

Missionário de seita estadunidense é nomeado para sensível área da Funai, a de proteção a aldeias isoladas, e preocupa ativistas. Caso abandone política de não-contato em nome da “catequese”, massacres e doenças ameaçarão povos originários

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No ISA

A nomeação nesta quarta-feira (5/2) de Ricardo Lopes Dias, um pastor que já atuou junto à seita norte-americana Ethnos360, anteriormente conhecida como Missão Novas Tribos, para exercer a Coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (CGIIRC), coloca os povos indígenas em isolamento voluntário na iminência de serem vítimas de genocídio. No Brasil, existem 115 registros destes grupos, 28 deles confirmados. A indicação de um missionário para chefiar a CGIIRC aponta para o retorno de uma política de contato forçado que, quando vigorou no país como política de Estado, nos anos 1970, provocou a morte de milhares de índios por doenças e violência perpetradas pelos próprios agentes de órgãos públicos. Tudo isso pode voltar a acontecer com o retorno do proselitismo religioso forçado.

Vista para maloca dos Moxihatëtëma, isolados da Terra Indígena Yanomami

Os povos indígenas em isolamento voluntário são sobreviventes de massacres que aconteceram ao longo do século XX, os maiores deles durante a década de 1970, quando o Estado brasileiro, comandado pela ditadura militar, promovia as chamadas “frentes de atração”, para contatar e “pacificar” as comunidades indígenas cujas terras o governo desejava ocupar. Além da violência propriamente dita — são inúmeros os relatos de chacinas e massacres, incluindo bombardeio aéreo de aldeias —, essas comunidades foram vítimas também de epidemias levadas por não indígenas em expedições oficiais de contato forçado. Algumas populações indígenas perderam 90% de seus integrantes por doenças para as quais não dispunham de anticorpos.

É o caso dos Nambikwara, cujo território distribui-se entre Mato Grosso e Rondônia. Antes do contato, a etnia contava com cerca de 10 mil indivíduos. Nove mil morreram em decorrência de epidemias de sarampo, gripe, coqueluche e gonorreia. Situação parecida foi vivida pelos Panará, no norte do Mato Grosso. Entre 1973 e 1976, 80% da população morreu em decorrência da gripe e da malária. De 400 indivíduos, restaram apenas 79. Os exemplos são inúmeros. Em 1982, missionários da Missão Novas Tribos do Brasil, a mesma do novo coordenador da Funai, promoveram o contato forçado com os últimos remanescentes da etnia Zo’é, no norte do Pará. O contato resultou em uma epidemia, com dezenas de mortes. Os missionários acabaram expulsos do território.

Estancar o genocídio de comunidades inteiras foi o principal motivo para a instituição da política de não contato na Funai, a partir de 1987. Essa política, pensada por sertanistas, antropólogos e outros formuladores de políticas públicas, foi a base para a criação da CGIIRC. Ela consiste em garantir a proteção dos territórios onde vivem esses povos, impedindo a entrada de invasores e a construção de empreendimentos que os afetem. Essa é até hoje competência do órgão, estabelecida pela portaria 281/2000 da Funai.

Com a indicação do missionário para coordenar esse departamento da Funai, porém, volta a pairar a ameaça do contato forçado e, com ela, a iminência de novas tragédias.

É dever do Estado brasileiro, previsto na Constituição, garantir a sobrevivência física e cultural desses povos nas terras em que ocupam. Isso significa um território protegido onde possam ter sua própria organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.

A aculturação forçada dos povos indígenas é uma afronta à Constituição e prática regular do fundamentalismo evangélico, inclusive da seita do coordenador nomeado, que tem na catequese a sua missão principal. Em seu artigo 129, inciso V, a Constituição destaca, entre as funções institucionais do Ministério Público Federal (MPF), a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas. Já passou da hora do Procurador Geral da República, Augusto Aras, tomar providência. Até agora, não se ouviu palavra sua sobre essa situação deplorável. A sua omissão compromete a reputação da instituição que deve defender a sociedade — e as minorias, em particular — de quaisquer arbitrariedades governamentais.

O não contato deve ser visto como uma manifestação do desejo de autodeterminação desses povos, direito garantido também pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. A opção pelo isolamento ainda é protegida pela Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que garante aos povos indígenas direitos mínimos de salvaguardar suas culturas e identidades no contexto das sociedades que integram.

A política anti-indígena de Jair Bolsonaro extrapolou limites constitucionais e enoja o mundo todo. Destruir a política de não contato é acabar com uma estratégia que ajuda a salvar vidas há mais de 30 anos. O Brasil já viu o resultado do contato forçado, um contato de morte. Esperamos que essa tragédia não se repita de novo.

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