Religiões, nova fronteira do feminismo?

Quatro mulheres que confrontaram estruturas patriarcais em suas religiões reúnem-se, trocam experiências e lançam apelo contra a discriminação e sexismo entre as fés

O painel com as llíderes religiosas no Centro Comunitário Judaico em Manhattan, em 13 de novembro

O painel com as líderes religiosas no Centro Comunitário Judaico em Nova York

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Quatro mulheres que confrontaram estruturas patriarcais em suas religiões monoteístas reúnem-se, compartilham experiências e lançam apelo contra a discriminação e sexismo entre as fés

Por Jamie Manson, no National Catholic Reporter Tradução: Luísa Flores Somavilla no IHU Online

Décadas de diálogo inter-religioso demonstraram que há muitas semelhanças entre as três principais religiões abraâmicas. Judeus, cristãos e muçulmanos compartilham uma crença comum em um Deus. Compartilham personagens em comum, como profetas, anjos e o Satanás. Têm códigos de moralidade, responsabilidade social e responsabilização semelhantes.

Também compartilham da exclusão das mulheres da liderança religiosa e espiritual.

Embora alguns ramos do judaísmo e algumas denominações do cristianismo permitam participação igualitária às mulheres no ministério, o Islã, o judaísmo ortodoxo e a Igreja Católica Apostólica Romana e a Igreja Católica Ortodoxa continuam ditando e reforçando a ideia de que a superioridade masculina é ordenada por Deus.

Esta sanção teológica do sexismo foi tema recente de uma apresentação num painel, chamada “Um lugar feminino” (A Women’s Place), realizado no centro comunitário judaico em Manhattan. Com quatro líderes religiosas, a apresentação refletiu sobre suas respectivas lutas pela igualdade das mulheres em suas tradições religiosas.

Entre as palestrantes estavam a Rabina Sara Hurwitz, a primeira judia ortodoxa oficialmente ordenada rabina; a Rev. Dr. Neichelle Guidry, ministra e pastora cristã ordenada que recentemente foi nomeada como um dos “12 novos rostos da liderança negra”; Sarah Sayeed, uma muçulmana que atua como conselheira sênior da Unidade de Assuntos Comunitários da prefeitura da cidadae de Nova York; e a Irmã de Misericórdia Theresa Kane, que ficou conhecida por receber o Papa João Paulo II durante sua visita aos Estados Unidos em 1979, pedindo que ele incluísse as mulheres “em todos os ministérios da nossa Igreja.”

O painel foi apresentado com a estreia do filme Radical Grace, de Nova York, que documenta três religiosas irreprimíveis que desafiam o Vaticano e arriscam seu lugar na Igreja para seguir seu chamado de justiça social.

Theresa Kane, a freira que confrontou João Paulo II em 1979

Theresa Kane, a freira que confrontou João Paulo II em 1979

Para Sara Hurwitz, sua jornada até se tornar a primeira rabina ortodoxa começou com um profundo sentimento de fé, que ela experimentou ainda enquanto criança. “Eu tinha a ideia de que eu tinha que cumprir uma visão de justiça que vinha do céu”, disse à plateia.

Na tradição judaica, “o trono de Deus é rodeado por quatro pilares: justiça, retidão, bondade e verdade”, explicou. Ela sentiu o chamado para trazer “os pilares para o mundo e para o meu trabalho.”

O primeiro sentimento de chamado de Neichelle Guidry também veio na infância. Criado numa família católica, ela lembra-se de ter se conscientizado da desigualdade do patriarcado e da desigualdade de gênero na preparação para a crisma. Quando perguntou por que as mulheres não podiam ser sacerdotes, sua professora disse que tais “questões não eram permitidas na educação católica”.

Quando sua mãe juntou-se a uma igreja Pentecostal, foi a primeira vez que viu uma mulher no papel de clériga.

“Foi um marco para mim”, lembrou, “ver alguém que se parecia comigo proclamando, servindo, administrando sacramentos e guiando o povo de Deus”.

A questão de se as mulheres devem atuar nos mesmos papéis que os homens também provocou a voz profética de Theresa Kane, que contou a história da Irmã de Loretto Mary Luke Tobin no Concílio Vaticano II.

“Havia 15 mulheres do mundo inteiro numa sala com 600 ou 700 homens”, disse ela. “As mulheres não podiam falar em público no Concílio. [Tobin] levantou a questão de se a Igreja deveria se abrir às mulheres em todas as formas de ministério na Igreja. Aquilo fez com que eu me tornasse radical.”

Dez anos depois do desafio de Tobin, ela foi convidada para receber João Paulo II em nome das religiosas dos Estados Unidos. O fato de a Igreja Católica ter continuado minimizando as vozes das mulheres era aparente no convite. “A única instrução que recebi era ‘seja breve, porque ele não está aqui para ouvi-la'”, lembra.

Theresa disse que a audácia de suas boas-vindas só foi possível porque ela tinha estudado sobre as mulheres na Igreja e na sociedade por uma década, com outras freiras. “Tendo essa educação de forma contínua, não era natural para mim cumprimentar o Papa dizendo ‘se a Igreja é fiel aos ensinamentos de Cristo, então, enquanto instituição, deve oportunizar a presença das mulheres em todos os ministérios da Igreja’.”

Para Sarah Sayeed, a exclusão das mulheres da comunidade muçulmana é ainda mais profunda do que da liderança religiosa.

“Existe um entendimento de que os homens são obrigados a ir às orações de sexta-feira”, disse ela, mas as mulheres não.

“Elas são convidadas, mas na sexta-feira muitas vezes dizem que não há espaço suficiente”, disse. “E então elas geralmente não vão à mesquita”.

E quando vão, muitas vezes ficam no porão, de onde não conseguem ver o imã. “Encontramos todo tipo de forma criada para distanciar as mulheres e os espaços da mesquita”, relatou.

Sem as mulheres, também não há crianças na mesquita, apontou. “Não há experiência de oração com a congregação, então perdem o contato com sua cultura e sua fé.”

E ainda, ao tentar navegar o espaço da mesquita para ser mais inclusiva, muitas vezes ela é criticada por “tornar a mesquita um lugar mais ocidental, mais feminista”.

Assim como ela, cada mulher no painel tinha uma história sobre ser ensinada a questionar ou desconstruir as estruturas exclusivas de suas instituições religiosas.

Sara Hurwitz relatou que quando foi ordenada pela primeira vez, em 2010, havia poucas reações, mas depois, quando funcionários da congregação mudaram seu título de “maharat” para “Rabina”, disse, “foi uma tempestade”.

Treze rabinos assinaram uma declaração pedindo sua excomunhão. Outros decretos surgiram em 2013, 2015 e no início deste ano.

“A comunidade ortodoxa não conseguia lidar com o título de rabina”, lembrou.

Sara mencionou que já se acostumou a fazer as coisas que deixam as pessoas desconfortáveis, mas no final continua sendo mistificada por todos da oposição. “Estamos apenas tentando servir à comunidade e levar a voz da justiça, a Torá, a religião, Deus e a humanidade para mais pessoas.”

Em um de seus piores dias, ela recebeu um telefonema anônimo de um homem, dizendo que ela estava destruindo a comunidade ortodoxa.

“Nunca quis ser causadora de nenhuma destruição”, disse ela. “Estivemos muito perto de reverter meu título e dizer que talvez fosse cedo demais.”

Mas um fluxo repentino de cartas de meninas de 11 anos de idade fez com que ela mudasse de ideia. “As cartas diziam: ‘agora temos um modelo, podemos nos enxergar tendo lugar na comunidade ortodoxa com mulheres na liderança'”, recordou. “Foi o que me fez seguir.”

Sarah Sayeed também encontra esperança nas palavras e no testemunho de outras mulheres muçulmanas, principalmente do passado. “As mulheres foram âncoras espirituais o tempo todo, para todas as pessoas. É importante para mim, enquanto muçulmana, recuperar essa história.”

Por exemplo, foi Cadija, a primeira esposa de Maomé, que “tinha fé nele e o inspirou a pregar”, observou. Sua segunda esposa, Aisha, guardou o Hádice, o primeiro registro escrito dos pronunciamentos de Maomé.

“As mulheres estão intimamente ligadas à proteção da fé e da espiritualidade”, disse ela. “Eu tento lembrar as nossas comunidades que as mulheres eram parte muito importante da Mesquita do profeta Mohammed.”

Neichelle Guidry disse que também encontra inspiração na história das mulheres na igreja.

“Sinto que qualquer mulher que já tenha estado em um púlpito está, de certa forma, indo contra o sistema”, afirmou. “Quando estou no púlpito para proclamar, é meu ato de devoção e de protesto.”

Pregar uma mensagem radical sobre o racismo, a supremacia branca e a sanção teológica da misoginia trouxe muitas críticas a Neichelle. Recentemente, depois de um sermão, foi escrita uma carta aberta de preocupação a seu respeito, que circulou em todo o país.

Embora ela tenha concordado que esta oposição feroz é um sinal de que ela está “fazendo algo certo, também é humilhante, traumatizante e doloroso e traz isolamento”.

Segundo ela, é essencial e urgente que as mulheres se apoiem mutuamente. “Precisamos contar umas com as outras”, afirmou. “A irmandade é uma das formas mais radicais de resistir às estruturas do patriarcado”.

Após a recente controvérsia, ela disse que foi avisada de que a sua mensagem radical poderia levar igrejas a pararem de chamá-la para pregar. Mas assim como as três palestrantes com quem dividiu o palco, ela tem coragem de fazer história, lembrando as mulheres que vieram antes dela.

“Na história das mulheres no Ministério, não esperamos que ninguém nos chamasse”, declarou. “Fomos lá e fizemos. Não preciso esperar alguém chegar e me dizer que eu posso falar. Falo quando Deus diz que eu devo”.

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