O nascimento da Fridolatria

A transformação da artista em ícone pop foi feita a partir de exotismos artificiais, que buscaram narrativas colonizadoras para despi-la de seu espírito revolucionário 

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A transformação de Frida Kahlo em ícone pop foi feita a partir de clichês e exotismos artificiais, que buscaram narrativas colonizadoras para despi-la de seu espírito revolucionário 

Por Valeria Luiselli, na Revista 451  Tradução: Fernanda Diamant

Frida, a vadia sem vergonha na cara. Frida, a artista deficiente, Frida, símbolo do feminismo radical. Frida, a vítima de Diego. Frida, o ícone chique, gênero-fluido, belo e monstruoso. Sacolas de pano Frida, chaveiros Frida, camisetas Frida, e também a nova Barbie Frida (sem monocelha), lançada neste ano. Frida Kahlo tem sido sujeito de escrutínio global e exploração comercial. Tem sido apropriada por curadores, historiadores, artistas, atores, ativistas, consulados mexicanos, museus e pela Madonna.

Ao longo dos anos, essa avalanche trivializou a obra de Frida para que se encaixasse em uma rasa “fridolatria”. E, enquanto certa crítica foi capaz de se opor às visões que a qualificam como ingênua, infantil, quase uma artista involuntária, a maioria das narrativas continua a classificá-la como uma pintora geograficamente marginal: mais uma artista do mundo em desenvolvimento esperando para ser “descoberta”, mais um sujeito sem voz à espera de ser “traduzido”.

Em 1938, Frida Kahlo pintou Lo que el agua me dio (O que a água me deu), talvez a tela responsável por lançar sua carreira internacional, mas também por falsear sua tradução mundo afora. Nessa espécie de autorretrato, vemos os pés e as canelas de Kahlo dentro de uma banheira e, acima deles, como se emanasse do vapor, uma paisagem de colagens: um vulcão em erupção, do qual emerge um arranha-céu; um pássaro morto que jaz em cima de uma árvore; uma mulher estrangulada; um formidável vestido tehuana estendido; um casal de mulheres descansando em uma cortiça flutuante.

Kahlo estava trabalhando em Lo que el agua me dio quando o surrealista francês André Breton chegou ao México para uma visita. Ele ficou transfixado pelo quadro. Chamou Kahlo de uma “surrealista nata” e escreveu em um catálogo, endossando sua estreia em Nova York, na galeria de Julien Levy, em 1938: “Minha surpresa e alegria foram sem limites quando descobri, na minha chegada ao México, que o trabalho dela desabrochou, em suas últimas pinturas, em pura surrealidade, apesar do fato de terem sido concebidas sem nenhum conhecimento prévio de espécie alguma das ideias que motivavam as minhas atividades e as de meus amigos”.

Apesar de “surrealista nata” ter ajudado a traduzir as pinturas de Kahlo para o público europeu e argentino, esse rótulo sempre foi rejeitado por ela. Ser projetada como uma “surrealista” na Europa ajudou o público a entender o trabalho dela de forma mais imediata — mais palatável. Foi marcada como autenticamente mexicana, com apelo internacional. Mas ser vista como “surrealista nata” também a transformou em uma espécie de sauvage: inconsciente de seu talento, sem suspeitar de sua maestria. Depois de sua estreia, um crítico da revista Time descreveu sua obra como “a delicadeza das miniaturas, os vívidos vermelhos e amarelos da tradição mexicana e o bem-humorado fascínio por sangue de uma criança nada sentimental”.

Dificilmente Kahlo deixaria de suspeitar ou de ter consciência do que estava fazendo e de quem era. Ela sabia como capitalizar os elementos de sua vida pessoal e de sua herança cultural, fazer uma curadoria cuidadosa e usá-los para construir sua persona pública. Era uma mestiza, nascida na Cidade do México, que adotou um look zapoteca-tehuano tradicional.

Seu pai, o alemão Carl Wilhelm “Guillermo” Kahlo, era um fotógrafo reconhecido, e a família vivia em uma mansão neocolonial em Coyoacán, a famosa Casa Azul. Kahlo tinha plena consciência das complexas políticas de individualidade que estava criando e manipulando. Em uma foto de 1939, tirada durante a abertura da primeira exposição de Kahlo em Paris, ela está posando em frente a Lo que el agua me dio. Usa um vestido tehuano e a monocelha foi sublinhada com delineador: Frida representando Frida. (Não fica claro qual dos dois elementos é a obra de arte.)

O trabalho de Kahlo e sua persona eram percebidos no México de modo muito diferente, é claro, do modo como eram traduzidos em outros meios culturais. Assim como Breton associou a categoria “surrealista natural” à sua arte e enquadrou seu trabalho em um discurso que ela mesma não abraçava, muitos outros fizeram o mesmo com diversos aspectos de sua vida pública e privada.

Arquitetura

Um exemplo curioso disso é a casa-ateliê na Cidade do México, onde ela e Diego Rivera viveram e trabalharam durante alguns de seus anos mais produtivos na década de 30. Ela foi projetada por Juan O’Gorman, o jovem arquiteto que era na época um dos pioneiros das mudanças arquitetônicas radicais que aconteceram na Cidade do México pós-revolucionária.

Protegidas por uma cerca de cactos e ligadas por uma ponte, as casas-ateliês de Rivera (à esq.) e de Frida

Antes da Revolução Mexicana (1910-20), as arquiteturas dominantes eram a neoclássica e a colonial. Casarões de influência francesa espalhados pela cidade se erguiam como solitárias homenagens à nobreza europeia que rapidamente entrava em decadência, e a vida familiar da burguesia mexicana se desenrolava nos cômodos suntuosos e escurecidos daqueles interiores, com suas cortinas pesadas e ornamentação excessiva. Mas, depois da revolução, novas ideias sobre higiene, ventilação, conforto, eficiência e simplicidade abriram caminho na cidade. As casas e, com elas, a vida cotidiana foram transformadas rápida e radicalmente.

Em sintonia com essas mudanças ideológicas e arquitetônicas, o casal pediu a O’Gorman que projetasse um ateliê e uma casa para eles. O arquiteto criou espaços especificamente para um casal de pintores — ao mesmo tempo separados e conectados. As construções eram as primeiras do México projetadas com necessidades funcionais específicas: viver, pintar e expor os trabalhos.

Em 1933, alguns anos depois do casamento, Kahlo e Rivera se mudaram para lá. O espaço de Rivera era maior, com mais área de trabalho. O de Kahlo era mais “caseiro”, com um ateliê que podia se transformar em quarto. Um lance de escadas levava do ateliê dela ao terraço, que era conectado por uma ponte ao espaço de Rivera. Além de ser um lugar de trabalho, tornou-se um espaço pra os casos extraconjugais do casal: Rivera, com suas modelos e secretárias; Kahlo, com alguns homens famosos e talentosos, do escultor e designer Isamu Noguchi a Leon Trotsky. Talvez sem saber, O’Gorman desenhou uma casa cujo projeto permitia uma relação aberta.

A casa era um emblema de modernidade e uma espécie de manifesto: um exemplo solitário de um novo funcionalismo numa cidade ainda à procura de uma linguagem arquitetônica nacional que melhor se adequasse ao seu programa revolucionário. Ela não codificava valores ou mensagens tradicionais. Simplesmente contemplava as necessidades práticas de seus habitantes, era materialmente eficiente (feita principalmente de concreto armado), socialmente progressista e barata.

No entanto, com o tempo, por mais que a intenção da arquitetura das construções tenha sido de neutralidade, elas acabaram se tornando um ponto de encontro da capital cultural mexicana, especialmente conectado às artes autóctones do país. O casal recebia visitantes que iam até lá para ver sua obra e seus trabalhos em andamento, além da coleção de artes e artesanato: Trotsky, Nelson Rockefeller, Pablo Neruda, John Dos Passos, Sergei Eisenstein, Breton.

O’Gorman deu a Rivera e Kahlo uma máquina de morar, como Le Corbusier teria definido, mas também uma máquina para se traduzirem. A casa tanto trouxe estrangeiridade quanto serviu de plataforma para projetar uma certa ideia de México para o mundo. Mais do que tudo, serviu de palco para o casal poderoso da modernidade mexicana: cosmopolitas, sofisticados, bem relacionados e mais mexicanos que o México. A obra máxima do casal foi, é claro, eles mesmos. Kahlo e Rivera foram, talvez, os primeiros artistas performáticos do México, e sua casa-estúdio era a sua galeria.

Em 1934, o fotógrafo Martin Munkacsi visitou o México e documentou copiosamente a casa e os ateliês. As fotos foram encomendadas pela Harper’s Bazaar, a revista de moda de Nova York que se dirigia a um público feminino de classe alta, na maioria americano, mas também francês e britânico. Na edição de julho de 1934, uma página dupla intitulada “Cores do México” exibia três das muitas fotografias de Munkacsi: uma de Kahlo cruzando a ponte de uma casa para a outra; uma de Rivera trabalhando em seu ateliê; e uma de Frida subindo a escada para o terraço. No meio das páginas, há uma grande foto do casal caminhando ao lado da cerca de cactos; uma legenda explica “Diego Rivera e Señora Freida [sic] Kahlo de Rivera em frente a uma cerca de cactos, em sua casa na Cidade do México”.

As casas foram projetadas para corporificar a ideologia proletkult, assemelhando-se a um complexo fabril ou industrial, com caixas d’água visíveis, materiais expostos e colunas aparentes. A cerca de cactos ao redor da casa, se vista em relação a ela, aumenta a sensação industrial do conjunto. No entanto, a Harper’s escolheu a imagem que mais descontextualizava a cerca de cactos e a mostrou como um elemento folclórico e decorativo. À direita dessa imagem central, uma série de fotos de camponeses descalços, vendendo artesanato e montados em mulas.

Acompanha o ensaio fotográfico um texto de Harry Block — um editor de Nova York — que descreve a sua busca por sandálias mexicanas perfeitas: “Todo o México anda de huaraches…” Justaposto ao retrato de Rivera e Kahlo — ele, vestido feito um dândi europeu, inclusive pelos sólidos sapatos de couro; ela, de bota preta de bico fino — a ode de Block ao huarache soa forçada.

A matéria da Harper’s é um exemplo perfeito de como o México era perpetuado, nesse tipo de história, como um espaço marginal com lampejos de modernidade, como uma rara exceção à regra. A revista mostra um México extremamente estrangeiro, mas de um modo que também o torna mais fácil de capturar e explicar para plateias estrangeiras, através dos clichês que associamos a ele. É uma forma de tradução que simplifica as complexas operações que aconteciam na casa Rivera-Kahlo.

Uma casa mexicana funcionalista, que exibia arte pós-revolucionária? Impossível! Melhor usar a foto com os cactos.

Início

Esse exemplo de narrativas colonizadoras nas traduções culturais não era o fim, mas o início. Em 2002, Frida, estrelando Salma Hayek, de quem se exigiu uma Kahlo mais sexy — mais nudez, menos monocelha —, foi distribuído pela produtora de Harvey Weinstein, mas disso ele parece ter se safado. Em um número de seu show no México em 2016, Madonna puxou da plateia uma sósia de Frida, disse que estava “muito feliz” em finalmente conhecer Frida e então deu a ela uma banana de presente.

Barbie Frida, lançada em 2018

No último Halloween, minha sobrinha de 21 anos foi arrastada por uma amiga para uma festa universitária em Nova York. Ela não se fantasiou, não estava no clima. Num dado momento, chegou um trio de Mulheres-Maravilhas: bota vermelha até o joelho, shortinhos com estampa de estrelas, top tomara-que-caia, faixas douradas presas a longos cabelos loiros.

Uma das três maravilhas deu uma talagada numa garrafa e quase caiu para trás quando, subitamente, notou minha sobrinha parada atrás dela. Ela se virou e a encarou. Estudou-a de perto.

Assim como muitas mulheres do lado materno da minha família, ela herdou uma escura e robusta monocelha. A Mulher-Maravilha enfim disse: “Meu Deus, é a Frida Kahlo!”.

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