Bolsonaro e a Bolívia: possível Operação Condor 2?

Jornal argentino amplia investigação sobre encontros encobertos entre o presidente brasileiro e Jeanine Áñez, que assumiu a Bolívia após golpe e está presa. Suspeita: articulação com direita brasileira, tráfico de armas e fuga de funcionários

Imagem: Danilo Balderrama/Reuters
.

Por Dario Pignotti, no Página 12, com tradução de César Locatelli, na Carta Maior

Jair Bolsonaro reconheceu ter se encontrado com a ex-presidente boliviana Jeanine Añez, confirmando as suspeitas sobre o apoio brasileiro ao golpe que derrubou o presidente Evo Morales. O possível encontro pode ser a ponta de uma meada onde conspirações, fugas clandestinas, fuga de ministros e, talvez, até mesmo a entrega de armas se enredem.

Em um ato aparentemente involuntário, o ex-capitão e presidente afirmou: “A ex-presidente da Bolívia, Jeanine… Eu estive com ela uma vez, ela é uma pessoa legal que está na prisão”. Para depois acrescentar, com raiva, “você sabe qual é a acusação contra ela? (ter cometido) atos antidemocráticos”. Como até o momento não há notícias de nenhum encontro oficial entre os dois, essa conversa ocorreu secretamente.

Segundo essa declaração, para Bolsonaro, atacar instituições é algo que não deve ser punido com a prisão da ex-presidente, que permanece detida em um presídio em La Paz, onde se prepara para enfrentar um novo julgamento. O que Bolsonaro não disse foi quando e onde ocorreu o encontro com a mulher que governou de fato a Bolívia, entre novembro de 2019 e dezembro de 2020, quando o presidente Luis Arce tomou posse.

Nesse período de pouco mais de um ano, o avião presidencial boliviano, que só pode decolar com autorização do chefe de Estado ou com ele a bordo, voou com frequência e clandestinamente ao Brasil.

A confissão

Em alguns canais bolsonaristas do YouTube, eles aparentemente perceberam a gravidade das declarações do presidente sobre o encontro com Añez e as retiraram do ar. O comentário presidencial, ou melhor, a confissão, pode ser levada à consideração do tribunal que, a partir desta semana, começará a julgar Añez junto com os ex-chefes militares e policiais no processo denominado “Golpe de Estado II”.

Uma ex-alta funcionária de Morales e diplomata que atualmente trabalha fora de seu país analisou, em diálogo com Página 12, em condição de anonimato, a conexão Brasília-La Paz e os elementos que tal fato pode aportar ao iminente novo julgamento.

“Acredito que a declaração do presidente Bolsonaro é importante para este julgamento porque é mais uma prova de que o governo de Evo Morales foi atacado por uma organização internacional. Isso significa que o golpe de estado recebeu ajuda desde o exterior.”

Devemos esperar a evolução desta fase oral do julgamento, propõe a ex-funcionária, mas “se Añez aceitar que houve essa reunião, ela terá que explicar por que não a informou”.

“A senhora Añez está sendo investigada pelo modo não constitucional como chegou ao poder, usando o caminho da violência. O povo boliviano quer que ela seja investigada pelas mortes ocorridas para que ela chegasse ao poder”, continuou o diplomata.

Añez, bem-vinda

O encontro secreto de Bolsonaro e Añez está em sintonia com o apoio público dado por Brasília ao movimento que depôs Morales. Na manhã de 13 de novembro de 2019, horas após a posse de Añez, o Brasil foi o primeiro país da região a parabenizar o novo governo “constitucionalmente” surgido.

Añez chegou ao Palacio del Quemado junto com o líder de Santa Cruz de la Sierra, Fernando Camacho, apelidado de “Bolsonaro da Bolívia”, que em meados de 2019 havia sido recebido pelo então chanceler brasileiro, Ernesto Araújo. Após a conversa, Camacho e Araújo foram fotografados junto com a deputada Carla Zambelli, de ardorosa estirpe bolsonarista.

Vale ressaltar que o golpe boliviano não foi do novo tipo “soft”, seja parlamentar ou via “lawfare”, como os que derrubaram Dilma Rousseff em 2016 e o ex-presidente paraguaio Fernando Lugo em 2012. O golpe boliviano seguiu os moldes clássicos, com a participação de policiais e militares, guardando alguma semelhança com aqueles que levaram às ditaduras dos anos 60 e 70 até hoje defendidas pelo presidente brasileiro.

O apoio brasileiro ao regime civil-militar de La Paz continuou em 2020 com o objetivo de construir uma hegemonia regional de direita, que incluiu o apoio aos candidatos Keiko Fujimori no Peru e Antonio Kast no Chile. Para isso, era necessário impedir o retorno do partido Movimento ao Socialismo, de Morales, através da candidatura de Luis Arce, que finalmente venceria por ampla margem em outubro de 2020. Dessa vez, o Brasil foi o último país importante a manifestar seus votos ao vitorioso Arce, ex-ministro da Economia e Finanças durante os governos de Morales.

Voos

Página 12 publicou em junho de 2020, quando Añez estava no Palacio del Quemado há seis meses, um artigo assinado por Felipe Yapur sobre os “voos suspeitos e repetidos” do avião presidencial da Força Aérea Boliviana 001, o FAB001, com destino ao Brasil. A investigação é baseada em informações da empresa de rastreamento de voos dos EUA FlightAware.

Na lista de viagens ao Brasil estão várias com destino a Brasília onde poderia ter ocorrido o encontro entre Bolsonaro e Añez, ao qual o ex-capitão se referiu durante uma transmissão ao vivo nas redes sociais ocorrida meses atrás, quando acusou seu rival, Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, de “apoiar a volta do povo de Evo Morales na Bolívia”.

O primeiro voo do FAB001 foi em 11 de novembro de 2019 “após a queda do presidente Morales e antes da assunção de Añez”, diz a fonte boliviana consultada por este jornal. “Minha percepção é que o movimento do avião no dia 11 de novembro é extremamente estranho, não sabemos se era para levar ou trazer algo do Brasil. Sou diplomata de carreira, quando um presidente sai do país ele tem que avisar e deixar o vice-presidente em seu lugar, e isso não aconteceu.”

Senador Carvalho

O senador brasileiro Rogério Carvalho, do PT, não tem dúvidas sobre a participação brasileira na trama contra Morales. “De zero a dez, a chance de apoio de Bolsonaro ao golpe é dez.” Questionado por este jornal, o deputado afirmou que “Bolsonaro dá seu total apoio a qualquer governo que seja antidemocrático ou a forças políticas antidemocráticas”.

Segundo Carvalho, o Congresso poderia tomar providências sobre o assunto e descobrir como foram as relações de Bolsonaro com Añez e outras possíveis conexões.

Uma área cheia de perguntas sem resposta é a fronteira entre os dois países, com mais de 3.400 quilômetros de extensão, por onde teriam passado recursos para o movimento sedicioso de 2019 e que poderia ter servido como zona de fuga em 2020 para os funcionários de Añez, o ministro da defesa Luis Fernando López e o ministro do governo Arturo Murillo.

Armas?

A diplomata e ex-funcionária de Morales lembra que Murillo, depois de passar pelo Brasil, foi preso nos Estados Unidos por lavagem de dinheiro e outros crimes relacionados à compra de armas. Ela suspeita que o ex-chefe da Defesa, López, pode estar escondido no Brasil. A nossa fonte, que entrevistamos em agosto e voltamos a consultar brevemente no domingo, refere-se novamente às viagens clandestinas da FAB001 e destaca a viagem realizada no final de dezembro de 2020.

A data desse voo coincide com a de um documento do Ministério da Defesa boliviano em que se menciona que uma carga de armas deve ser retirada em 30 de dezembro.

“Como simples cidadã me pergunto: o avião presidencial estava no Brasil em dezembro? Sim. Existe algum documento em papel timbrado do Ministério da Defesa do Estado Plurinacional da Bolívia afirmando que haveria entrega de armas no Brasil? Sim. É possível que em um aeroporto no Brasil as armas sejam entregues a outro país. Isto é normal?” pergunta a ex-funcionária boliviana.

E conclui propondo que sejam investigados os pontos de “contato” que relacionam “Bolsonaro dizendo que se encontrou com Añez” com a possível “saída do país da ex-presidente” e a suposta “entrega de armas no Rio”.

Leia Também: