A farsa do Capitólio à brasileira e como enfrentá-la

No domingo, desafiou-se a ordem com fins ultraconservadores. Mas se quiser transformar o país, a esquerda precisa recuperar para si as ações de rebeldia, o domínio sobre esta força indubitável que uma multidão possui, quando deseja e luta pelo que deseja

AP Photo / Eraldo Peres
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Por Clarice Gurgel, em A Terra é Redonda

No dia 8 de janeiro de 2023, um grupo de pessoas, que já acampavam no Distrito Federal desde outubro, avançou sobre os prédios e edifícios dos três poderes da República brasileira. Os constitucionalistas comentavam que a tentativa de golpe era crime, pois não era prevista na constituição. Tamanha miopia funcionalista não permitia aos intelectuais compreenderem que, para que se configure um golpe, sua previsão constitucional é uma impossibilidade.

Ainda assim, mesmo com a revogação da Lei de Segurança Nacional, em 2022, a política contra-insurrecional – esta tentativa de regulamentar o que foge à regra – avançou ainda mais, quando a tentativa de abolição do Estado democrático de direito foi expressamente tipificada como crime contra a ordem.

Desde 2013, no Brasil, a direita passou a ocupar um lugar tradicional da esquerda, no que corresponde ao seu acervo de ações diretas e de demonstrações. Dentre elas, ocupações de prédios públicos, derrubadas de símbolos como estátuas e monumentos até passeatas e manifestações. Assim, a direita repete o repertório da esquerda. Mas esta última atua assim por princípio e por necessidade. Conscientes do caráter pedagógico do trabalho coletivo, os movimentos sociais e organizações políticas têm a ação coletiva como meio e fim. Não é, portanto, o meio da ação direta, nem a ação de multidão o que qualifica os sujeitos e as ações de domingo. É o fim, sua finalidade. Ainda que o fim determine a forma que assume o meio.

No caso de domingo, ocupar os prédios não bastava. Era preciso destruir ao máximo o patrimônio, pois, assim, o ato geral cumpriria o papel não só tático, mas também estratégico, de desmontar a máquina pública, destruir a memória e a cultura nacionais, inviabilizar os serviços públicos e desmoralizar os símbolos de soberania. É preciso atentar para o papel do bolsonarismo como uma espécie de estabilizador da democracia, esta última restrita à governabilidade, àquele grau de participação que não inclui ação direta e que não pode avançar, por ser um obstáculo estrutural para a própria sobrevivência do capitalismo, na periferia.

Eficácia bolsonarista

Neste sentido é que acreditamos que os atos de domingo não foram performáticos. Conforme suas características determinantes, as invasões dos bolsonaristas nem são ações isoladas, nem efêmeras, nem extraordinárias. São ações que vinham se realizando há três meses, em um acúmulo, e que tinham como espelho o que ocorreu no Capitólio, nos EUA, em 2021, tendo sido, repetidas vezes, anunciadas que seriam, repetidas. Tal como toda ocupação, o desafio maior desses que acampavam em frente a quarteis e comandos militares, não era a entrada, era a saída. Ela tinha que ser honrosa e exitosa. Por esta razão, sua perseverança visava e visa – por sua natureza de guerra de movimento e de posição, com movimentações e ocupações de espaços concretos e de poder – a manutenção e expansão de um poder já conquistado por Jair Bolsonaro.

Neste sentido, os atos bolsonaristas, até o momento, são performativos. Ao serem realizados, já obtém um resultado pretendido, dado que a suspensão da lei e a reafirmação da força direta, por via, por exemplo, de uma intervenção federal, já corresponde ao que aqueles que apenas reconhecem as forças mais violentas do Estado buscam. Em outros termos, é preciso atentar para a eficácia dos bolsonaristas: o enunciado que emitem produzem efeitos imediatos, seus atos de fala são claramente compreensíveis.

No campo da linguística, alguns poderiam sugerir que se tratam de atos ilocucionários. As pessoas e as circunstâncias que compõem as ações apresentam convenções, regras de conduta compartilhadas, são apropriadas para a invocação da ação. A ação é executada mutuamente, com pessoas comungando, de fato, de um pensamento e de um sentimento, tendo a intenção de conduzir a ação de modo subsequente. As seis regras do filósofo John Austin. Regras que, por sua vez, não se observam mais em muitas ações coletivas da esquerda. Inclusive, na própria ação preventiva de autodefesa, que, sem dimensão dos riscos que corre, revela o quanto o governo Lula não tem consciência do que representa e dos reais riscos que poderia produzir aos conservadores.

Karl Marx era forte crítico da forma do golpe como ação política para conquista do poder. Esta, aliás, foi a crítica mais imediata que dirigiu, logo no início da experiência da Comuna de Paris. Seguindo esta tradição, Lênin e Gramsci dedicaram-se a articular luta política e luta econômica. Eles estavam atentos à necessidade de construção de uma hegemonia apta a ensaiar formas variadas de organização na sociedade civil. Ou seja, o campo marxista parte da premissa de uma relação dialética entre consciência politica e luta por direitos, bem como da luta em nome do desejo – com raízes em Hegel – e a relação entre Estado e sociedade civil. Assim, é que se torna relevante a conjugação entre ação organizada e espontânea, tendo o conceito de ação performática nos servido também de ferramenta conceitual para entendermos as ações organizadas que simulam espontaneidade, como as de domingo.

A tomada de poder não é como uma grande noite, ainda que envolva grandes feitos. Estes últimos, acima de tudo, precisam ser repetidos, ou seja, precisam ser instituídos em seu sentido mais cotidiano, de insistência libertadora. Ao longo da semana, em uma insistência conservadora, mais de cem ônibus circularam no Distrito Federal, mobilizando milhares de pessoas, com o apoio da polícia militar e do governo local.

Ouvimos muitos dizerem que nunca testemunhamos, no Brasil, ações como estas, que nos permitem uma melhor aproximação daquilo que seria um ato insurrecional. Ações que eram comuns em tempos em que a sede do governo nacional era no Estado da Guanabara, e que atualizam a perspectiva da desobediência como dimensão da ação política, muito restrita, hoje, a ações de demonstrações. Passeatas e petições enquadram-se melhor na estética funcionalista dos tempos atuais, em que cada força política cumpre sua função: a direita acumula e a esquerda protesta.

A ação contestadora das instituições da ordem é, porém, parte da gramática revolucionária, seja em seu sentido conservador, seja em seu sentido transformador, de mudança da forma de organização social. A ocupação e a depredação não são substantivas, são meios. O método da ocupação e da destruição é adotado em todo processo revolucionário, em algum de seus tantos momentos.

Foi como se deu, por exemplo, na Revolução Francesa, a revolução burguesa, com a famosa queda da Bastilha, em que os grandes líderes como Danton permaneciam distantes do front, reservado ao vulgo, à plebe. Meios semelhantes eram adotados na Revolução Haitiana, esta última, porém, como repetição do novo, como negação do que os revolucionários franceses faziam, na colonização do Haiti, pela afirmação dos próprios valores franceses.

A raiz dos radicais

Neste domingo, a ação de ruptura da ordem se repetiu como farsa, em sua fiel condição, de inversão: com uma estética quase onírica, daquela de quem a tudo se atreve, uma massa repetiu, às avessas, grandes eventos históricos que marcaram o processo de independência e autodeterminação de nações no mundo inteiro e que compõem, até hoje, o imaginário de muitos militantes.

Muitas revoluções libertadoras e transformadoras, socialistas e nacionalistas servem-nos de referência, quando o assunto é a tomada do poder. A revolução russa é o exemplo mais magnífico. Em Cuba, no México, na Nicarágua, os processos insurrecionais implicavam em superação de algo que produzia um suprassumo, resultante do esforço radical – de ir na raiz – de conceitos como liberdade, igualdade e fraternidade, na substância do que é independência.

Mais do que um Acting Out, como uma realização imaginária de invisíveis como indígenas, trabalhadores, buscando escuta, os atos de domingo, no Distrito Federal, são Passagens ao Ato, são ações sem mediação e de eliminação improdutiva – bem ao estilo de uma oligarquia-especulativa – que faz uso de métodos revolucionários com fins conservadores. O fim a qual serve este meio é o esgarçamento social, o desregramento e a política dos mais fortes. Como resposta, cabe ao presidente Lula reivindicar a ordem e não aprofundar a suspensão da regra. Ao estilo dos haitianos, cabe ir à raiz dos conceitos da própria ordem: segurança e controle, em seu sentido radical, de demarcação clara e contenção daqueles que efetivamente ameaçam a autodeterminação do povo brasileiro.

Na contramão de uma caracterização performativa dos atos de domingo, alguns analistas sugerem que as ações dos bolsonaristas não tiveram qualquer desdobramento. Foi feito em um fim de semana, com as instituições esvaziadas. Entretanto, é preciso atentar para os aspectos que permitem a duração, a ousadia e a autenticidade das ações que se iniciaram em outubro e que, na melhor das hipóteses, culminaram neste domingo dos três poderes.

Para que esses elementos existam é preciso uma verossimilhança, que, em termos mais consequentes, envolve: (i) história – grandes feitos a se repetirem – que sirva de enlaçamento libidinal de certa multidão, que, assim, sente-se viva e imbuída de sentido de viver; (ii) adesão ideológica – reconhecimento de si naquela representação, por heranças simbólicas construídas em anos, pelas diversas instituições como família, igreja, escola, trabalho; e ) estrutura – apoio material com dinheiro e recursos que envolvam algum nível de poder.

O governo do Distrito Federal, parte da Polícia Federal, milícias, empresários, latifundiários, quadros do agronegócio compõem estes elementos necessários para a manutenção e avanço das ações. Este senso de sacrifício só é possível pela presença forte de um sentido claro que justifique atos em nome destas instituições, reconhecidas e detentoras de autoridade nos dias de hoje.

A esquerda precisa recuperar para si a titularidade das ações de rebeldia, o domínio sobre esta força indubitável que uma multidão possui, quando deseja e luta pelo que deseja. Mas para isto é preciso conjugar o instituído e o instituinte, a capacidade de fazer ruir e a responsabilidade de fazer erguer, combatendo aquelas heranças simbólicas que ainda enlaçam os conservadores, erguendo novas estruturas de poder cada vez mais democráticas. Só assim qualquer revolução brasileira terá como direção a fraternidade entre os homens, indo na raiz do que é ser radicalmente humano.

Clarisse Gurgel é cientista política, professora da Faculdade de Ciências Sociais da UNIRIO.

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