A amnésia fardada que acomete juízes e jornais

Editoriais e TSE normalizam “contagem paralela” de votos pelo Exército, por direito de checagem. Mas, longe de um “interessado qualquer”, instituição tem abrangência, força e ambição para aventuras – e nada a ver com eleição e urnas

.

Por Pedro Marin, na Revista Opera

A três semanas do primeiro turno das eleições, as Forças Armadas são, mais uma vez, fonte de confusão sobre o processo eleitoral e as urnas. No último domingo, a Folha de São Paulo noticiava que os militares haviam entrado em um acordo com o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, para terem “acesso diferenciado em tempo real” dos arquivos da totalização dos votos. Além disso, as Forças Armadas prometiam que iriam até seções eleitorais, tirariam fotos dos QR Codes de 385 boletins de urna e os enviariam ao Comando de Defesa e Cibernética do Exército que, então, os compararia com os dados da totalização. De acordo com a Folha, dois militares e um integrante do tribunal disseram que o acordo teria sido feito no dia 31 de agosto, em reunião entre o ministro Alexandre de Moraes e o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira.

No dia seguinte, o TSE negou qualquer acordo com as Forças Armadas para “permitir acesso diferenciado em tempo real aos dados enviados para a totalização do pleito eleitoral”. Disse, no entanto, que “independentemente dessa possibilidade, como ocorre há diversas eleições, qualquer interessado poderá ir às seções eleitorais e somar livremente os BUs [boletins de urnas] de uma urna específica, de dez, de trezentas ou de todas as urnas.” 

Pelo fato dos boletins de urnas de fato sempre serem fixados nas seções eleitorais depois do pleito, muitos têm feito parecer que a medida nada teria demais. Editorial da mesma Folha, por exemplo, vai no mesmo sentido da nota do TSE, proclamando que “plano dos militares para urnas soa mais modesto do que delírios de Bolsonaro” e que “está longe de representar uma contagem paralela dos votos ou qualquer coisa parecida. Ele servirá apenas para verificar a solidez dos dados”. Outros comentaristas acompanham a opinião do jornal e do TSE.

Façamos um exercício breve de interpretação de texto. A proposta das Forças Armadas consiste em pegar 385 boletins de urna e compará-los com os dados da totalização, dentro do Comando de Defesa e Cibernética do Exército. Trata-se, portanto, de uma apuração paralela dos resultados, com base em uma amostragem que, segundo os fardados, garantiria 95% de confiabilidade – nada muito longe de uma “contagem paralela ou qualquer coisa parecida”. É verdade que, do ponto de vista técnico, nenhum problema haveria, a princípio; os militares não terão a premissa do cômputo dos votos, e de fato “qualquer interessado” pode somar livremente os BUs de quantas urnas forem – o que significa que é possível também fazer uma auditoria paralela da auditoria paralela das Forças Armadas.

O problema reside precisamente no fato das Forças Armadas não serem “qualquer um”. Primeiro: são forças singulares, forças armadas, como a própria designação diz. Segundo, são forças estatais, burocráticas. Terceiro, são forças nacionais. Quarto, são forças garantidoras de todas as outras. E, quinto: são forças que, deixando de lado um amontoado de episódios históricos cuja lembrança mais cansaria o leitor, instauraram o regime militar de 1964, mantiveram-no por 21 anos, e insistem ainda hoje em considerá-lo um “movimento democrático contra o perigo comunista”, não só em ordens do dia, mas também no material que editam para o público interno e externo (com recursos públicos). Não são um “interessado qualquer” porque, dentre os possíveis interessados – por exemplo, os que compõem a Comissão de Transparência das Eleições (CTE) – são os únicos que sustentaram pela força regimes de exceção e que continuam a louvá-los, que têm a incumbência de sustentar o sistema político em última instância, que têm, por isso, maciça presença em todas as regiões do País, e que contam com centenas de milhares de membros armados e pagos precisamente para isso. As universidades, organizações e ONGs que compõem o CTE não têm presença nacional, não são garantidoras de nada, não instauraram nem aplaudem ditaduras. O Tribunal de Contas da União, a OAB, o Ministério Público Eleitoral, tampouco são comparáveis. Em resumo: poucos são os “interessados” que podem “somar livremente” mais do que dez boletins de urnas – quem dirá 385 ou todas –; e, dentre os que podem, nenhum deles têm armas nem os homens para usá-las.

Deixemos de lado a interpretação de texto e a lembrança dos fatos. Partamos para uma hipótese: e se as Forças Armadas, depois de sua auditoria paralela, declararem terem encontrado inconsistências entre os boletins de urna e a totalização dos votos, mimetizando a atuação da OEA durante o golpe na Bolívia em 2019? Certamente, como dizem os editorialistas, “qualquer interessado” poderá auditar os auditores fardados. Mas, até lá, não seria essa declaração, partindo de organização tão relevante quanto as Forças Armadas, justificação para a instauração do caos, para o movimento de bases violentas e sedentas por desordem? A propósito: e se os auditores fardados, apesar de contrariados por outros auditores, decidirem levar à última instância os seus cálculos de boletins? Terão estes segundos auditores os meios para barrar fisicamente os primeiros?

Lanço a hipótese só para reforçar a singularidade das Forças Armadas, razão pela qual nada deveriam ter a ver com eleições e urnas. Antes de uma aventura do tipo, é provável que a auditoria dos militares sirva somente para que, reconhecendo os resultados, limpem sua atuação, normalizem sua presença e imponham, mais uma vez, a perigosa amnésia que acomete juízes e jornais quando se tratam de fardas.

Não foram estes, afinal, os que trabalharam para que essas mesmas Forças Armadas tivessem a incumbência de participar da Comissão de Transparência, com o objetivo não de estimular o caos nas eleições, fazer questionamentos absurdos e ajudar a colocar a lisura das urnas em xeque, mas sim de, com seu atestado da validade das eleições, isolar o presidente? Os juízes e os jornais, escandalizados, foram libertados de sua amnésia – atribuível talvez ao brilho dos ferros ou dos coturnos? – quando o presidente declarou que “eles convidaram as Forças Armadas a participar do processo. Será que ele [o ministro Luís Roberto Barroso] se esqueceu de que o chefe das Forças Armadas se chama Jair Messias Bolsonaro?” Esqueceram, e, lembrados, já se esqueceram de novo.

Leia Também: