Sul-africanos recriam vacina de mRNA da Moderna

Deram demonstração importante de que é possível vencer as restrições de propriedade de grandes farmacêuticas. Apoiados pela OMS, podem ajudar outros países a ganhar autonomia no campo da Saúde – e diminuir o apartheid vacinal

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Deve ter sido uma grande satisfação para Tedros Adhanon, diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), a notícia, divulgada dia 2/2, de que os sul-africanos conseguiram recriar a tecnologia de produção da vacina anticovid de mRNA da farmacêutica Moderna. Eles produziram apenas microlitros de vacina. Mas foi uma grande conquista da OMS, realizada pela empresa sul-africana Afrigen Biologics and Vaccines. 

A Afrigen demonstrou que é perfeitamente possível aumentar a capacidade de fabricação global de vacinas de mRNA aproveitando o potencial técnico, científico e industrial dos países emergentes. As grandes farmacêuticas destinaram aos países industrializados, que têm elevada renda de consumo, mais de 70% das doses de imunizantes anti-covid que produziram, conforme artigo na revista Nature citando análises de mercado. A revista cita os desenvolvedores de vacinas de mRNA Moderna e Pfizer nos EUA e BioNTech na Alemanha. 

Essa distorção continua, diz Martin Friede, da OMS, que coordena o dito “Hub sul-africano” da OMS, instalado em julho de 2021 na Cidade do Cabo, junto à Afrigen e do Instituto Biovac. O “hub” é um centro de disseminação de tecnologia, equipamentos, conhecimento técnico, apoios financeiros e de recursos humanos, necessários para desenvolver, produzir, fazer controle de qualidade e regulamentar vacinas de mRNA. A ideia essencial, materializada no produto da Afrigen, é democratizar a tecnologia das vacinas de mRNA. 

Nesses termos, a perspectiva industrial é mais importante do que a meta imediata de conter a pandemia – que o programa da OMS nem poderia realizar. O cientista-chefe da Afrigen, Gerhardt Boukes, enfatiza a importância da autonomia. “Fizemos isso sozinhos para mostrar ao mundo que pode ser feito, e feito aqui no continente africano”. A OMS pediu à Moderna, Pfizer e BioNTech que ajudassem nesse esforço. Mas as empresas não responderam, e a OMS teve a coragem de seguir em frente sem elas. 

Tarefa dura, que requereu deduzir os processos de produção dos imunizantes, que são sigilosos, à parte alguma informação pública disponibilizada. O produto da Moderna, diz Martin, era melhor conhecido nesse aspecto, e por isso foi escolhido. Além disso, a Moderna prometeu não impor seus direitos de propriedade durante a pandemia. Alguns países – França, Alemanha, Bélgica e outros – ajudaram com o financiamento. Desde o final de setembro, uma equipe da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, ajudou na pesquisa. 

No início de dezembro, a Afrigen já estava recebendo frascos preliminares de mRNA. Cientistas de todo o mundo, relata Nature, também ajudaram. Petro Terblanche, diretor da Afrigen, acha que ficaram desiludidos com a distribuição distorcida de vacinas “e quiseram ajudar a tirar o mundo desse dilema”. Acredita-se que agora várias empresas do “sul global” aprenderão com a Afrigen. 

Vacinas de mRNA são um caminho novo e importante na Saúde. Cientistas de várias universidades estão desenvolvendo novos produtos nessa linha, que podem ser vacinas mais baratas que as atuais, ou não exijam armazenamento ultrafrio como as vacinas anti-covid da Moderna e Pfizer-BioNTech. A própria Afrigen já está buscando um imunizante com essas características. 

E prometem revolucionar o tratamento de outras doenças, com vacinas contra a aids e outras doenças infecciosas e anti-câncer. Os cientistas africanos estão especialmente entusiasmados com a conquista de novas tecnologias. Apostam que vão se livrar da dependência das grandes empresas, decorrente dos desequilíbrios de poder global. A resposta a essa situação, acreditam, passa pelo desenvolvimento das capacidades dos países emergentes, dando-lhes condição de assumir a responsabilidade por sua própria saúde.

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