Suicídio é maior entre indígenas

Índice é três vezes mais alto do que a média nacional; caso dos Guarani-Kaiowá é emblemático

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Por André Cabette Fábio, no Nexo

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Lançada em 2003 pela International Association for Suicide Prevention, a campanha do Setembro Amarelo busca chamar atenção internacional para o suicídio durante todo o mês. No Brasil, a população que mais sofre com o problema é a indígena. De acordo com um relatório lançado na segunda-feira (9) pela Organização Mundial de Saúde, a taxa de suicídio na população brasileira, em 2016, foi de 6,1 mortes para cada 100 mil habitantes. A taxa entre indígenas brasileiros é mais que o triplo.

O último boletim do governo sobre suicídios, referente ao período entre 2011 e 2015, apontara um patamar menor, de 15,2 mortes para cada 100 mil indígenas. Em nota, o Ministério da Saúde afirma que a diferença se deve à melhor contabilização. “Os óbitos por suicídio na população indígena não estão aumentando no Brasil, e sim sendo oficializados, qualificados e divulgados.” Entre 2011 e 2015, a taxa entre indígenas também foi muito maior do que a encontrada em outras populações, como brancos (5,9), pretos e pardos (4,7) e amarelos (2,4).

O suicídio entre jovens indígenas

Um estudo publicado em junho de 2016 pela instituição internacional de pesquisa Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) analisou dados sobre suicídio de jovens no Brasil em 2013. De acordo com o trabalho, intitulado “Violência Letal contra as Crianças e Adolescentes no Brasil”, das cinco cidades com as maiores taxas de suicídios de jovens de até 19 anos no Brasil, quatro ficam no Amazonas, estado com a maior população indígena do país.

“Os municípios que aparecem nos primeiros lugares nas listas de mortalidade suicida são locais de amplo assentamento de comunidades indígenas, como São Gabriel da Cachoeira [onde 91,7% dos suicídios são de indígenas], Benjamin Constant [76,2%] e Tabatinga [74,1%], no Amazonas; Amambai [36,5%] e Dourados [31,6%], do Mato Grosso do Sul”, afirma o relatório. O relatório mais recente do Conselho Indigenista Missionário sobre violência contra indígenas, relativo a 2017, contabilizou 128 suicídios dessa população naquele ano. Ele traz uma série histórica destacando o caso do Mato Grosso do Sul, o segundo no ranking de população indígena e de suicídio de indígenas no Brasil, atrás do Amazonas.

O caso dos Guarani em Dourados

O caso dos Guarani-Kaiowá no sul do Mato Grosso do Sul é frequentemente destacado em relatórios que abordam as mazelas dos indígenas no Brasil.

Em 1917, o Estado brasileiro estabeleceu na região a Reserva Indígena Dourados, com o intuito de receber indígenas expulsos de outras áreas. Foi criada uma estrutura militar de gestão, com apoio da igreja evangélica Assembleia de Deus.

Com cerca de 3.000 hectares e 13 mil pessoas, a reserva tem, hoje, a maior concentração de indígenas do Brasil. Em junho de 2019, registrou a média de um assassinato a cada dois dias e meio. Muitas famílias levadas ao local disputam com fazendeiros e com o governo o direito de se reestabelecerem nas terras de onde foram expulsas.

Indígenas acampam por anos em estradas ao lado de extensas fazendas que ficam onde seus antepassados viveram.

A Reserva de Dourados foi um dos focos de estudo de um relatório da Unicef publicado em 2014 e intitulado “Suicídio Adolescente em Povos Indígenas”.

O trabalho ressalta que “apesar de a região [América Latina] registrar um dos índices mais baixos de suicídio em nível global, o suicídio de jovens indígenas lidera as taxas entre os diferentes grupos populacionais latino-americanos”.

A Unicef descreve uma situação em que os jovens precisam criar, rapidamente, novos modelos de sobrevivência. Muitos da geração de seus pais sofrem com problemas como abuso de álcool e pobreza, e não são vistos como referências.

Partes das tradições e modo de vida indígenas também vêm se perdendo. A reserva possui dezenas de igrejas pentecostais, uma católica e uma presbiteriana, e a narrativa mítica dos jovens mistura elementos da tradição e do cristianismo.

Se, antigamente, os jovens homens guaranis perfuravam a boca para marcar a transição para a vida adulta, agora “saem para ‘fazer-se homens’ no corte da cana”. As jovens mulheres vão diretamente buscar um companheiro, “sem passar pelo isolamento e a dieta tradicionais”.

Ao buscar empregos nas cidades, alguns dos jovens recorrem aos mercados de drogas e de armas. Eles passam a ser vistos como maus elementos pelos mais velhos, aqueles que “consomem as drogas e os que matam”. Sentem-se fora dos padrões da sociedade mais abrangente, excluídos, e têm baixa autoestima. “Todos esses motivos juntos representam as causas de os jovens apresentarem a extrema tristeza em que vivem.”

Entre os dias 2 e 5 de julho de 2019, jovens guarani-kaiowá realizaram um encontro em Bela Vista (MS), que resultou em uma carta final. Ela aborda aquilo que chamam de epidemia de suicídio de jovens guarani-kaiowá, desde a década de 1980.

Eles afirmam que vivem confinados em reservas ou aldeias superlotadas, ou então acampando na margem de rodovias, em “desespero permanente e sem esperança em viver bem nas nossas terras”.

São taxados com alcunhas como “indinho bugre”, ou “ bugre incapaz”, e ouvem falas como “índio nem deveria mais viver”. Entre as sugestões para lidar com o problema, listam apoio para realizar encontros de jovens e para estudar, além da demarcação de novas terras.

A demarcação de terras

Entre 2005 e 2006, foram registrados casos de mortes de crianças indígenas por fome na região do sul do Mato Grosso do Sul, o que levou o Ministério Público Federal a exigir que a Funai adotasse medidas. Um termo de ajuste de conduta de 2007 determinou a delimitação de uma nova terra indígena, a Dourados Amambaipeguá 1, o que só ocorreu em 2016.

Para que o processo de demarcação chegue ao fim, ele ainda precisa passar pela aprovação do Ministério da Justiça e Segurança Pública, comandado por Sergio Moro, e do presidente. O atual ocupante deste cargo, Jair Bolsonaro, vem prometendo reiteradamente não demarcar terras indígenas em seu mandato.

Quando assumiu, Bolsonaro tentou transferir a responsabilidade sobre a demarcação da Funai para o Ministério da Agricultura, por meio de medida provisória em janeiro, posteriormente derrubada pelo Congresso.

Ele insistiu, com uma nova medida provisória em junho, cujos efeitos sobre a demarcação foram suspensos pelo Supremo Tribunal Federal no início de agosto.

No final do mesmo mês, Bolsonaro afirmou que pretende rever as terras indígenas já demarcadas. Em nota ao Nexo, o Ministério da Saúde informou algumas medidas que vêm sendo adotadas no país para lidar com o suicídio indígena.

Medidas do governo contra o suicídio indígena:

  • O Ministério da Saúde afirma que ampliou o registro de óbitos nos sistemas oficiais
  • Diz que entre 2015 e 2018 qualificou 585 profissionais para elaborarem linhas de prevenção ao suicídio em 16 Distritos Especiais Indígenas prioritários
  • Diz que incluiu recursos e ações voltadas para populações indígenas nos planos de prevenção dos seis estados com maior incidência de suicídios, mas não informou o valor
  • Diz ainda que há um programa que identifica pessoas com vínculos a indivíduos com ideação suicida e as inclui em uma rede de apoio. Mas não informou o orçamento ou abrangência da iniciativa

O suicídio de indígenas no mundo

Publicado em 2009 pela Organização das Nações Unidas, o relatório “Estado dos Povos Indígenas do Mundo” posiciona o suicídio entre os maiores problemas de saúde de indígenas, ao lado de mortalidade infantil e materna, complicações ligadas ao consumo de álcool e outras drogas, e doenças causadas por obesidade e contaminação ambiental.

Na Europa: As altas taxas de suicídio são encontradas em povos como o Sami, na Noruega e na Finlândia. Entre indígenas no Norte da Rússia, a taxa de suicídios vinha aumentando, e era quatro vezes maior do que a média do país, que já é uma das maiores do mundo. ‘Rápidas mudanças sociais, pobreza e incerteza resultaram em altos níveis de estresse, abuso de substâncias químicas, acidentes, violência e suicídio’, afirma o relatório.

Nos Estados Unidos: Nos Estados Unidos, há uma taxa 82% maior de mortes de indígenas por suicídio do que entre o resto da população. Indígenas americanos entre 15 e 24 anos cometem 3,5 vezes mais suicídios do que a média nacional. O problema é maior entre indígenas do estado do Alasca, que tem a maior taxa de suicídios dos Estados Unidos.

No Canadá: Em algumas comunidades indígenas no Canadá, a taxa de suicídio entre jovens indígenas é 800 vezes maior do que a média nacional. Entre inuítes na região ártica, a taxa é 10 vezes maior do que a média. O relatório aponta os dados como sinal de crise na área de saúde mental, e ressalta que eles podem indicar serviços de atendimento insuficientes.

O Nexo conversou com dois pesquisadores sobre o suicídio indígena no Brasil:

  • Tonico Benites é guarani-kaiowá, pós-doutor em antropologia e coautor da minissérie documental com 13 episódios “O Mistério de Nhemyrõ”, que trata do suicídio de indígenas de diversos povos no Brasil. Ela foi finalizada em 2017, mas ainda não foi lançada
  • Spensy Pimentel é antropólogo e jornalista. Ele trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia e é pesquisador do Cesta (Centro de Estudos Ameríndios) da USP. Em 2017 realizou, com parceiros, o documentário ‘Monocultura da fé’, sobre agressões de grupos pentecostais a xamãs guarani-kaiowá

Por que o suicídio de indígenas é mais alto do que o da população em geral?

Tonico Benites: A primeira vez que eu ouvi uma repercussão interna sobre suicídio de guarani-kaiowá foi quando eu era criança, na década 1980. Quem tem mais de 60 anos não se lembra de isso acontecer no passado. A Reserva de Dourados é um espaço de terra cercado, delimitado, criado no início do século 20 com essa visão de que os indígenas viviam de forma errada, e deveriam viver todos juntos, numa vila, com ruas, uma casa do lado da outra.

Até a década de 1960, a maioria não vivia na reserva, vivia na terra indígena tradicional, sem instituições se envolvendo no meio da família. Não eram famílias tuteladas, viviam com autonomia sobre como lidar com problemas familiares, como casamento, separação. Com parteiros, curandeiros e suas formas de tratar problemas espirituais. Os aplicadores das novas regras foram os militares, com o intuito de apagar a cultura indígena.

Foi uma evangelização. A Assembleia de Deus se instalou em Dourados em 1928, e foi aliada do Estado. Ela dominava e administrava o guarani-kaiowá que chegava à reserva. Até hoje, a Missão Evangélica Caiuá continua a administrar a saúde e a educação indígenas. Na tradição, a autoridade é sempre dos parentes, a pessoa mais querida da família, alguém mais idoso.

A estrutura na reserva é uma hierarquia militar, com o capitão indígena, a polícia indígena, o sargento indígena, que atuam no interior da família. O capitão era extremamente temido, com cacetete e auxiliares armados; se mandou, tinha que cumprir. Era um lugar de medo, com punições rígidas, torturas e humilhação públicas, diferente da tradição.

Toda essa vida levava muita gente a tristeza, medo, raiva e desespero. O guarani-kaiowá namora cedo, aos 14 ou 15 anos já pode até casar. Mas, pela nova regra não podia. O jovem que se apaixonava contrariava a reserva, porque teria que casar na igreja aos 18 ou 20 anos. Era uma imposição, muitos fugiam. Quando eram resgatados, eram torturados. Em um caso desses, puniram raspando o cabelo de uma menina, que era muito bonito, e o menino foi castigado.

Depois, fiquei sabendo que ela cometeu suicídio. Até anos 1990 ainda tinha coisas da tradição, como caça e pesca. Mas quando começou a disputa pela terra, o índio foi proibido de circular, isso acabou, e a miséria aumentou. Toda a terra que pertencia ao indígena hoje é fazenda. A alternativa é ir ao centro urbano, pedir na rua, mexer no lixo, sofrer preconceito. A maioria se sente humilhada.

Spensy Pimentel: São quadros muito complexos e é difícil isolar causas, ainda mais quando tem esse fenômeno se espalhando pelo país. O que podemos formular enquanto acadêmicos e pesquisadores são hipóteses.

Um elemento como o acesso à terra é muito grave no Mato Grosso do Sul, mas em Carajás, ou no Rio Negro, essa restrição não está presente. Tem também a chegada das igrejas, uma nova onda de evangelização cristã neopentecostal, após séculos de evangelização católica.

A escolarização, o acesso à língua portuguesa e a exposição aos costumes urbanos geram situações como exposição ao consumo, ao álcool, a drogas, a novos padrões de relacionamento amoroso ou conjugais, que não eram comuns há duas ou mesmo uma geração. Dá para a gente pensar em uma espécie de choque a partir dessas várias situações.

Essas várias situações estão associadas àquilo descrito em vários locais como colonialismo interno, à criação de políticas públicas sem cuidado ou consulta às comunidades, mesmo quando absolutamente bem intencionadas, como o Bolsa Família.

Você vê comunidades em que as famílias têm que se deslocar de barco por dias para sacar o dinheiro, o que gera uma série de interferências no modo de vida de gente que antes vivia na comunidade e mal falava português. Ao mesmo tempo, tem uma indução ao consumo.

O que pode ser feito?

Tonico Benites: O kaiowá também tem suas formas de lidar com doenças mentais. Antes da reserva, tinha mais autonomia. A família também busca resolver e tem suas formas de prevenção. Ela já sabe identificar sinais de que a pessoa está pensando em se matar, quando fica em silêncio, entrando em desespero.

Mas isso não é considerado pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena). Esse diálogo é muito difícil com Estado, ainda mais nos últimos tempos, sobre como trabalhar em conjunto. Hoje, são a Missão Evangélica e a Sesai que contratam psicólogos, mas o psicólogo não indígena não é preparado para lidar com o indígena, e seria importante não atuar sozinho.

A maioria dos jovens hoje tem isso na cabeça de que está tudo difícil, uma miséria, sem muita solução, sem esperança. A pessoa idosa aconselha, encoraja. O Estado deveria ouvir a liderança que tem experiência em como tratar, resolver, convencer, para que a pessoa não pense efetivamente em se matar.

Normalmente, a Sesai contrata pessoas de outros lugares, mas deveria valorizar o profissional indígena. Em São José do Bananal, um líder carajá sugeriu trazer rezadores, líderes espirituais, de longe para fortalecer os jovens espiritualmente.

É uma situação que reúne as famílias, envolve o povo, que pode alegrar a pessoa entristecida, retirar o pensamento em se matar. Isso já aconteceu uma ou duas vezes no Mato Grosso do Sul com apoio da Sesai, mas parou. É muito difícil de convencer as autoridades a dar apoio.

Spensy Pimentel: No Mato Grosso do Sul o problema é denunciado por lideranças já faz mais de 35 anos, e o Estado fez pouquíssimo. A Sesai contrata psicólogos, mas não tenho notícia de um plano de ação coordenado para lidar com o suicídio.

Faltam esquemas de consulta às possibilidades e atenção à forma como essas políticas de acesso a recursos financeiros são apresentadas. E atenção à presença de igrejas neopentecostais e à forma como o comércio é feito.

Na Reserva de Dourados há dezenas de pontos comerciais sem regulamentação. Eles chegam a vender carne estragada, imagina se não vendem drogas. E tem a questão da segurança pública. Muita coisa anda ruim porque a polícia se recusa a entrar em reservas alegando que elas são jurisdição federal.

No [documentário] “Monocultura da Fé” registramos que parte das reclamações dos Guarani-Kaiowá é sobre a forma como os neopentecostais os tratam, com xingamentos, incentivo às queimadas, a violência. Na Reserva de Dourados há 90 igrejas evangélicas, e só sobrou uma casa de reza.

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