O sequestro do Fundeb

Depois de descartar propostas porque “tirariam de pobres para dar a paupérrimos”, presidente e aliados propõem captura de parte do financiamento de um direito social, a educação

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O anúncio foi objetivo, e também simbólico do grau de dependência que o governo tem hoje em relação ao Centrão. Em jogral com parlamentares aliados, o presidente Jair Bolsonaro anunciou ontem as fontes de financiamento do seu programa social. Por um breve momento, parecia que a novela iria acabar.

Mas a proposta foi recebida com indignação por oposição, órgãos de controle, juristas, especialistas em diversas áreas e – o que pesou mais para o Planalto & cia – pelos agentes do mercado financeiro.

“Calote”, “empréstimo compulsório”, “bola de neve fiscal”, “contabilidade criativa” e “pedalada” são algumas das definições que tentam passar a pratos limpos a ideia de represar o pagamento de precatórios e sequestrar parte dos recursos do Fundeb para criar o programa Renda Cidadã, antigo Renda Brasil. 

São muitos os problemas apontados, então vamos por partes, começando pelo Fundeb. O governo e o Centrão propõem desviar 5% do recurso do fundo para o Renda Cidadã. Esse dinheiro serviria para que beneficiários do programa mantivessem os filhos na escola, segundo o senador Marcio Bittar (MDB-AC).

Acontece que essa mesmíssima proposta já tinha sido apresentada por Paulo Guedes em agosto, e foi rejeitada no Congresso. Os parlamentares aprovaram a ampliação dos repasses federais para este que é o principal mecanismo de financiamento da educação básica. A previsão é que as transferências da União cheguem a R$ 19,6 bilhões no ano que vem – mas esse total vai mais que dobrar nos próximos seis anos.

Nas contas do Todos pela Educação, a captura dos recursos do Fundeb chegaria a R$ 8 bilhões. Para a entidade, que vocaliza as bandeiras empresariais na área, 17 milhões de estudantes, “principalmente aqueles das creches e pré-escolas”, seriam os principais prejudicados, e a retirada impactaria 2,7 mil municípios mais pobres do país “uma vez que a complementação da União é direcionada justamente para as redes de ensino mais vulneráveis”,

Entrando na esfera do debate sobre a legalidade da proposta, a Rede Brasileira de Renda Básica aponta que o uso de verba do Fundeb com assistência social é inconstitucional e vai também contra a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que determina o que pode e o que não pode ser compreendido como recurso da área. A Rede, que reúne 160 entidades, argumenta ainda que qualquer programa de complementação de renda não pode substituir direitos sociais, especialmente serviços universais como saúde e educação.

“A possibilidade de usar recursos do Fundeb para o Renda Cidadã já foi derrotada nas votações do Congresso Nacional. Políticas de promoção social, em qualquer país do mundo, são essenciais, mas com recursos da assistência social”, disse, por sua vez, o presidente da Comissão de Educação do Senado, Flavio Arns (Podemos-PR).

Há ainda um terceiro ponto, e esse tem mais a ver com a reação negativa do mercado. É que assim como acontece com o Fundo Eleitoral, os repasses da União ao Fundeb são excluídos da regra do teto de gastos, que impede que as despesas primárias cresçam mais que a inflação do ano anterior. Filipe Salto, da Instituição Fiscal Independente, ligada ao Senado, definiu a ideia como uma solução péssima por ser um “bypass” do teto

Devo, só pago quando quiser

A questão dos precatórios é ainda mais complexa. Precatórios são valores que devem ser pagos pelo Estado a pessoas ou empresas depois de decisões definitivas na Justiça. Para se ter uma ideia, nos 12 meses até julho, esses gastos ficaram em R$ 49,7 bilhões, de acordo com o Tesouro. E 40% desse bolo foi para o pagamento de direitos previdenciários. Uma menor parte do total, R$ 1,3 bi, foi inclusive para o BPC.  

A proposta do governo é limitar do pagamento de precatórios a 2% das receitas correntes líquidas. O que isso quer dizer? A proposta orçamentária para 2021 prevê R$ 54,75 bilhões para os precatórios. Já a receita corrente líquida é projetada em R$ 804,5 bi. Conclusão: cerca de R$ 38 bilhões seriam desviados dos precatórios para o Renda Cidadã no ano que vem. 

Acontece que há uma fila de pessoas que ganharam causas na Justiça e aguardam sua vez de receber o que têm direito. Muitas delas são idosas. Nesse sentido, o Supremo já decidiu que essa proposta é inconstitucional por afrontar cláusulas pétreas da Constituição, como a de garantia de acesso à Justiça. Em 2009, estados e municípios foram autorizados pelo Congresso a fazer exatamente o que o governo federal agora propõe: limitar a 2% das receitas o pagamento de precatórios. Mas o prazo dado pelo STF para que isso se encerre é… o final deste ano. Nesse sentido, a OAB observou que a proposta do governo “já nasceria inconstitucional”.

Há outro argumento contrário, que gera uma interessante discussão sobre a transparência e qualidade do endividamento público. Isso porque os precatórios são uma despesa obrigatória. O governo pode adiar e prejudicar quem quiser, mas é obrigado pela Lei de Responsabilidade Fiscal a incorporar tudo aquilo que não é pago à dívida pública. O Estadão ouviu técnicos do Congresso, e um deles explica que esse aumento da dívida consolidada da União aconteceria de forma “pouco transparente” e ainda oneraria os cofres públicos com os juros e a correção monetária para pagar o precatório mais adiante.

Além disso, a proposta fere a LRF ao criar despesa obrigatória de caráter continuado sem previsão de aumento permanente de receita ou redução permanente de despesa.

Detalhe: mesmo com recursos do Fundeb, precatórios e os R$ 35 bilhões programados para o Bolsa Família no ano que vem, o valor do benefício do Renda Cidadã não deve chegar nem aos R$ 300 que Bolsonaro tinha determinado antes, ao longo das discussões do Renda Brasil. E o escopo também é bem tímido: a ideia é incorporar dez milhões de pessoas. A Rede Brasileira de Renda Básica lembra que só o contingente que estava na fila do Bolsa Família somava mais de dois milhões. Ou seja, é um cobertor curtíssimo de proteção social ainda em meio à pandemia.

A Rede defende a flexibilização do teto. Outros especialistas apontam que o pior dos mundos é fingir que está tudo normal. “As propostas de contabilidade criativa têm surgido porque aparentemente não se quer enfrentar o problema de frente: se o objetivo é manter o teto, tem de reduzir despesa obrigatória. Se não quer manter o teto, tem de deixar claro. As escolhas a serem feitas são duras, mas simples. Não deveriam complicar”, resumiu para O Globo Alexandre Manoel, que fez parte do governo Michel Temer e continuou até março deste ano na equipe de Guedes. Segundo a Folha, até entre integrantes da equipe econômica do ministro, a solução encontrada é vista como uma “pedalada”.

Explicações ao mercado

Esse misto de calote com endividamento oculto e drible do teto é o que pegou para o mercado. A Bolsa, que operava em alta de mais de 1% até o início da tarde, fechou em queda de 2,4%, a 94.666 pontos, menor valor desde junho. O dólar subiu 1,5%, a R$ 5,6390, maior valor desde 20 de maio. Os juros futuros dispararam. “Completamente absurda“, foi a definição dada pelo gestor do Opportunity, Marcos Mollica, à proposta do governo. 

Toda essa repercussão negativa gerou um episódio curioso. O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), pediu uma conversa com agentes do mercado financeiro. A teleconferência reuniu aproximadamente cem representantes de bancos e gestoras de investimentos, como Itaú e XP. Barros foi tentar acalmar os ânimos do mercado, mas saiu sem entender nada, segundo relatos feitos por participantes do encontro.

“A reação foi porque criaram um gasto e simplesmente não cortaram nada. Só empurraram gastos para frente e os articuladores não têm a mínima noção do que causou a reação adversa do mercado”, disse uma dessas fontes ao UOL. “O fato de não ter a contrapartida e de o governo sequer reconhecer que há, sim, uma flexibilização do teto amplia o ambiente de aversão ao risco”, resume o Valor, que continua: “A conversa, no entanto, não foi capaz de trazer qualquer alívio aos preços dos ativos. Segundo relatos de participantes desse encontro, Barros apenas reconheceu que uma parte do Renda Cidadã vai ser financiada pelo Fundeb e estará, portanto, fora do limite do teto de gastos. E atribuiu a piora do mercado à falta do anúncio dos gatilhos e da reforma [tributária]”. 

Volta atrás

O anúncio repercutiu tão mal que o governo já estuda abortar a apresentação do Renda Cidadã ao Congresso. De novo. Segundo a comentarista Ana Flor, assessores próximos de Bolsonaro começaram a defender uma mudança no programa e o senador Marcio Bittar (MDB-AC) estava pensando em desistir de apresentar o novo texto da PEC Emergencial. Isso aconteceria até amanhã. Mas agora talvez seja preciso buscar outras fontes de recursos. 

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