Sem propina, sem vacina?

Entenda a denúncia – e as pontas soltas – no caso envolvendo o governo federal e uma intermediadora de vacinas

.

Esta nota faz parte da nossa newsletter do dia 30 de junho. Leia a edição inteira. Para receber a news toda manhã em seu e-mail, de graça, clique aqui.

Uma denúncia grave eclodiu ontem à noite em reportagem publicada pela Folhao Ministério da Saúde teria pedido propina na compra de vacinas da AstraZeneca. Foi Luiz Paulo Dominguetti Pereira, representante de uma empresa chamada Davati Medical Supply, que revelou a história à jornalista Constança Rezende.

De acordo com ele, a Davati entrou em contato com o Ministério em fevereiro para oferecer 400 milhões de doses do imunizante, e o diretor de Logística da pasta, Roberto Ferreira Dias, impôs a condição de se “compor com o grupo”. Para essa “composição”, a empresa deveria acrescentar US$ 1 no preço de cada dose. Ou seja, cada pessoa vacinada renderia R$ 10 de propina. Dominguetti contou também que a reunião em que o negócio foi proposto aconteceu em um restaurante, num shopping, e que havia outras duas pessoas: “Era um militar do Exército e um empresário lá de Brasília”, disse, embora sem citar nomes. 

Ele afirmou ter recusado a proposta, que foi reforçada no dia seguinte, dessa vez dentro do próprio Ministério. Depois de nova negativa, não houve mais interesse da pasta pela compra. “Tentamos conversar com o Élcio Franco [ ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde], explicamos para ele a situação também, não adiantou nada. Ninguém queria vacina”, relatou.

Como dissemos ontem, Roberto Ferreira Dias, que teria pressionado o servidor Luís Ricardo Miranda durante o processo de compra da Covaxin, chegou a ser indicado por Jair Bolsonaro para assumir uma diretoria na Anvisa em 2019. E, embora sua indicação para o cargo atual tenha partido do ex-deputado Abelardo Lupion (DEM-PR), ela foi referendada por Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara e um dos focos do escândalo da Covaxin.

Logo após a publicação da matéria, o ministro Marcelo Queiroga decidiu exonerar Dias.

E Dominguetti vai ser ouvido pela CPI da Covid ainda esta semana: segundo o presidente da Comissão, Omar Aziz (PSD-AM), o depoimento será na sexta-feira.

Em tempo: deputados da oposição ao governo vão enviar representação ao Ministério Público Federal solicitando a apuração do caso.

Pontas soltas

Ainda há muita coisa para se investigar em relação à própria Davati Medical Supply, uma empresa pouco conhecida. Chama a atenção o fato de que a AstraZeneca sempre declarou que só negocia suas vacinas contra a covid-19 diretamente com governos federais e organizações multilaterais, o que torna a história inteira muito estranha. 

Em março, a empresa se viu no centro de uma polêmica no Canadá depois que uma federação que representa os povos indígenas do país tentou comprar vacinas por fora dos processos governamentais. Na época, a vacinação pro lá caminhava a passos muito lentos, e a empresa se ofereceu para intermediar a venda de doses da AstraZeneca. 

Tanto o governo do Canadá como a própria AstraZeneca advertiram que era furada. A porta-voz da farmacêutica britânica disse à polícia canadense que havia vários relatos de terceiros oferecendo seu imunizante de forma suspeita: “Posso compartilhar que comunicamos aos governos que, se uma organização está oferecendo o fornecimento privado de nossa vacina AstraZeneca / Oxford, provavelmente não é uma oferta legítima”, declarou. Por sua vez, o CEO da Davati, Herman Cardenas, se recusou a explicar como conseguiria milhões de doses se governos de praticamente todo o mundo tinham tanta dificuldade para vacinar suas populações.

Na mesma época, o Estadão reportou que centenas de prefeituras Brasil afora estavam assinando contratos com intermediadoras de vacinas para conseguir doses da Sputnik V e da AstraZeneca, mesmo com as farmacêuticas dizendo que não negociavam dessa forma. O destaque era a empresa búlgara TMT Globalpharma, mas a Davati também era citada: “Um documento apresentado à reportagem cita que a TMT buscou 70 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca por meio da empresa Davati Medical, dos Estados Unidos. O produto seria entregue ao governo federal, mas o Ministério da Saúde disse que jamais recebeu proposta destas empresas”. Também em março, o Consórcio Paraná chegou a entrar em contato com a Davati pedindo uma oferta para a aquisição de doses.

Dois meses depois, o repórter Lucas Ragazzi se fez passar por representante de uma cidade fictícia para negociar com pessoas que andavam entrando em contato com prefeituras mineiras para ofertar vacinas – e tentar entender o que estava havendo. Mesmo sem nenhuma comprovação, os negociantes diziam representar a Davati. E, para forjar alguma credibilidade, eles ainda diziam que a prefeitura de São Paulo tinha contratos com a empresa, o que é mentira.

Mais uma acusação

A bomba da Folha não foi a única da noite. A outra veio da Revista Crusoé, segundo a qual o deputado Luís Miranda (DEM-DF) recebeu oferta de propina para não atrapalhar a negociação da Covaxin. 

Ele disse que, dias após falar com Jair Bolsonaro sobre os indícios de irregularidade, esteve em uma reunião com Silvio Assis, lobista ligado ao deputado Ricardo Barros (PP-PR), e recebeu uma oferta milionária (mas sem valor definido) para que ele e seu irmão ficassem em silêncio.

A coisa esquenta: ainda segundo a matéria, um mês depois Miranda teve outra reunião com Assis e com o próprio Ricardo Barros. Foi feita então uma nova oferta de propina, agora no valor de R$ 1 milhão. Silvio Assis confirmou ter se encontrado com Miranda, mas negou o teor da conversa. E Ricardo Barros não declarou nada – disse que vai falar só com a Polícia Federal.

O complicado é que o próprio Luís Miranda não atestou o conteúdo da matéria da Crusoé, como nota a Folha. Ele afirmou que a revista “é responsável por suas matérias e certamente arcará com o que escreve! Não quero ser usado para criar narrativas e volto a afirmar que todas as minhas conversas com Ricardo Barros foram republicanas e não vou me pronunciar sobre fatos que não posso provar!”.

Esta nota faz parte da nossa newsletter do dia 30 de junho. Leia a edição inteira. Para receber a news toda manhã em seu e-mail, de graça, clique aqui.

Leia Também: