“Sem poder de decisão”

Plano de vacinação enviado ao Supremo não tem CoronaVac, nem anuência dos pesquisadores chamados pelo Ministério da Saúde para colaborar

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No sábado, o Ministério da Saúde enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) o plano nacional de operacionalização da vacinação contra a covid-19. O documento, que também foi publicado no site da pasta, causou uma série de controvérsias tanto em relação ao conteúdo, quanto no que diz respeito à metodologia e à transparência. 

Antes de mais nada, chamamos atenção para outra pirueta do governo federal com os números. É que o documento contradiz o que foi anunciado pelo ministério há uma semana. No site da pasta, até hoje está publicada a informação de que o acordo com a AstraZeneca garantiria 260 milhões de doses. Mas o plano em si leva em conta as doses previstas no contrato da Fiocruz com a farmacêutica – 100,4 milhões – e outras 30 milhões que podem ser fabricadas no segundo semestre. Somando as 42,5 milhões de doses que virão (quando ninguém sabe) do consórcio internacional Covax, o total fica longe das 300 milhões de doses que já vinham sendo publicizadas por Eduardo Pazuello… Qual é, então, a chave desse mistério? A pasta passou a incluir na conta divulgada há sete dias as 70 milhões de doses da vacina da Pfizer, acordadas apenas… na última quinta-feira. 

O governo federal continua não contabilizando a CoronaVac na lista as vacinas “já garantidas” pelo “Brasil”. O imunizante que começou a ser fabricado pelo Instituto Butantan em São Paulo é colocado no mesmo saco de “todas as vacinas” que estão na fase 3 dos testes clínicos e não têm acordo com o ministério. 

“Como que em um plano nacional de imunização uma vacina que está sendo testada no Brasil não foi sequer citada como uma das possibilidades? Enquanto isso, se coloca que estão negociando com a Pfizer, que é uma vacina que precisa de uma cadeia de frio muito especial, como esses como freezers -70° que não são baratos nem podem ser abertos a toda hora, e tem uma logística toda complexa. Mas não fala da outra vacina só porque está brigado com o governo A, B ou C?”, criticou o epidemiologista Roberto Medronho, da UFRJ, em entrevista ao jornal O Globo.

O plano de operacionalização afirma que a União “disponibilizará crédito extraordinário para aquisição de toda e qualquer vacina que adquira registro de forma emergencial ou regular que apresente eficácia e segurança para a população brasileira”. O governo federal prepara uma medida provisória para liberar R$ 20 bilhões para comprar e centralizar a distribuição de imunizantes no país.

E o Ministério da Saúde retirou mesmo os detentos do grupo de pessoas prioritárias para receber a vacina. Os funcionários do sistema prisional, contudo, permanecem entre os grupos com prioridade na vacinação. A pasta também não seguiu a orientação de pesquisadores, vetando a inclusão de quilombolas e ribeirinhos entre os grupos prioritários. O governo justifica dizendo que essas populações poderão ser inseridas – ou não. Vai depender “do cenário de disponibilidade de vacinas e da estratégia de vacinação”. A estimativa apresentada pelo governo prevê a vacinação de 51 milhões de pessoas até o fim do primeiro semestres.

Essa decisão já vinha sendo denunciada pelo grupo de pesquisadores que compunha o eixo epidemiológico do plano. E partiu daí a maior controvérsia sobre o documento. 

Segundo eles, o ministério não divulgou a versão final plano para quem participou da sua construção. Em nota, 36 cientistas afirmam que a pasta usou seus nomes no documento, mas que a versão final não chegou a ser apresentada pelo ministério. “Importante destacar que o grupo técnico havia solicitado reunião e manifestado preocupação pela retirada de grupos prioritários e pela não inclusão de todas as vacinas disponíveis que se mostrarem seguras e eficazes”, dizem.

A epidemiologista Ethel Maciel, que integrou esse grupo, escreveu no Twitter: “o governo enviou um plano, no qual constam nossos nomes e nós não vimos o documento. Algo que nos meus 25 anos de pesquisadora nunca tinha vivido!“.

Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, foi mais fundo: “Não posso comentar sobre um plano que não sabemos se é fraude, se é verdadeiro, por quem foi escrito, quem é que assina. Como vou comentar da parte técnica de um plano cujos técnicos não assinaram?” 

A deputada federal Natália Bonavides (PT-RN) já entrou com representação no STF contra o general Pazuello, pedindo a investigação de possível falsidade ideológica e fraude processual no plano.

O Ministério da Saúde deu mais uma demonstração de autoritarismo. Em sua resposta à nova crise, primeiro afirmou que os pesquisadores que emprestam seu prestígio ao plano foram consultados como convidados para participarem de debates, mas “sem qualquer poder de decisão” sobre o documento. Quatro horas depois, se reposicionou, dizendo para a imprensa que os convidados foram indicados pelo Programa Nacional de Imunizações para participar de debates, “cabendo ao PNI o poder de decisão na consolidação e formalização” do plano. Ou seja, o gabinete jogou a batata quente na mão da área técnica. 

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