Por que o futuro do Pérola Byington está ameaçado

Em SP, hospital público de referência em Saúde da Mulher muda para região degradada e passa a ser administrado por OS. Por trás da propaganda, multiplicam-se incongruências e incertezas – inclusive sobre a capacidade de atendimento à população

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Está coberta de incertezas a abertura do Centro de Referência em Saúde da Mulher (CRSM) (ou simplesmente Hospital da Mulher), em São Paulo. Foi construído no bairro dos Campos Elíseos, região central da cidade onde se convencionou chamar “cracolândia”, e teve sua inauguração parcial no dia 15/9. Irá substituir o Hospital Pérola Byington, referência histórica em atendimento a mulheres e vítimas de violência sexual ou doméstica, além de tratamentos oncológicos. Trata-se de uma Parceria Público-Privada (PPP) de investimento estatal milionário, mas pouco se sabe sobre sua real efetividade.

Em tese, o novo prédio terá capacidade de atender cerca de 20% a mais do que o Pérola, cujo edifício era alugado de uma sociedade beneficente. Mas ainda faltam informações básicas sobre o processo de transição de uma instalação para outra. Tampouco há orientações claras sobre o que vai acontecer com seus funcionários. A questão da segurança, importante para um hospital que atende mulheres em uma região de violência urbana crescente, também não é pautada. São opacas, ainda, as circunstâncias em que um hospital público de administração direta foi transferido a uma Organização Social de Saúde (OSS) oriunda do mercado imobiliário.

No novo hospital, a administradora dos chamados serviços de “bata branca”, isto é, tudo que envolve o aspecto médico-hospitalar, será a Organização Social Seconci, oriunda de um conglomerado de grandes empresas da construção civil. Já a chamada “bata cinza”, que abrange zeladoria e não envolve as atividades-fim, ficará por conta da Inova Saúde, que na verdade é braço da Seconci e entre seus acionistas está o dono da Construcap, empreendedora que construiu o novo hospital.

O fato de os serviços estarem saindo da administração direta do estado para OSSs apenas reforça dúvidas. Por enquanto, apenas os atendimentos ambulatoriais estão em funcionamento e não há um cronograma oficial de transição dos serviços que ainda estão nas instalações do Pérola Byington. O contrato de concessão administrativa – elaborado a partir de licitação de 2013 e que abrange a construção também de um centro de referência em São José dos Campos – tem duração de 20 anos e uma previsão de custos totais de R$ 2,6 bilhões de reais (cerca de R$ 1,5 bi destina-se ao “Novo Pérola Byington*)”.

Paulo Moura, oficial administrativo no Pérola e diretor do SindSaúde, é um dos funcionários que ainda não sabe quando irá mudar. “A transição não tem transparência, não sabemos bem como está andando, alguns prazos não foram cumpridos”, explicou ao Outra Saúde. Favorável à criação de um conselho de trabalhadores e usuários para a gestão do equipamento, ele manifesta desconfiança de mais essa história de privatização dos serviços públicos (uma modalidade menos visível de privatização, pois o Hospital atenderá somente via SUS).

Como Outra Saúde e até uma CPI recente já mostraram, muitas OSSs funcionam muito mais como empresas com fim lucrativo do que entidades filantrópicas, máscara com que se apresentam ao público. Segundo o estado, foram 245 milhões de reais investidos, a partir do financiamento do Banco Mundial. Já o site Setor Saúde informa que o BNDES financiou outros 120 milhões. O terreno tem 50 mil metros quadrados e foi doado pela prefeitura.

“Já se ventila que a Seconci planeja diminuir atendimentos de quimioterapia e de ambulatório de violência sexual. Vendem a enganação de que privatizar melhora, mas não acontece”, continua Paulo. “Haja vista a própria história do Pérola Byington, de excelência reconhecida e que sempre foi gerido pela Secretaria de Saúde. Já pedimos reunião com o superintendente da Seconci para saber dos planos concretos sobre atendimentos, mas mandaram falar com a secretaria”. Por sinal, consultada pela reportagem a respeito dos custos da construção e modelo de gestão do CRSM, a assessoria da Seconci também recomendou conversar com a secretaria.

Paulo explicita ainda um grande problema das novas instalações do hospital: a localização. Há um questionamento duplo acerca da construção de um equipamento público em área que é reduto de usuários de crack marginalizados e traficantes de drogas. A primeira, mais imediata, é da segurança: o hospital atenderá mulheres (entre elas, vítimas de violência), mas não há planejamento de como protegê-las dos riscos da região conflagrada. Mas há uma questão ainda mais complexa: não há planejamento para atender a população de dependentes químicos da região.

A elitização do bairro está no cerne do projeto do CRSM, explica Paulo. A obra era prevista para fazer parte do Nova Luz, megaempreendimento imobiliário desenhado na gestão do prefeito Gilberto Kassab para a região, em 2011. O projeto não foi para frente, mas como a parceria já havia sido firmada, o hospital vingou. “É possível criar políticas públicas para combater a adição daquela população. Ali mesmo, na Luz, tem o Cratod (Centro de Referência de Atendimento a Tabaco, Álcool e Outras Drogas), que trata especificamente de dependentes químicos e poderia ser ampliado, com mais assistência social, projetos de criação de possibilidade de saída daquela situação, com acesso a trabalho, moradia e atendimento médico”.

Quanto à segurança, o problema também é grave. As últimas gestões da prefeitura da cidade prometeram “acabar com a cracolândia”, mas ela resiste tristemente – alternando-se, com alguma frequência, o local onde se reúnem os usuários. Nada que resolva, pois segundo relata Paulo Moura, usuários e trabalhadores do novo hospital já relataram ataques sofridos. “Não existe nada pensado em relação à população do entorno, inclusive em termos de segurança – em especial mulheres, da faixa de 40, 50 anos ou mais, que devem frequentar em maior número, e os trabalhadores que estarão lá dentro prestando atendimentos”.


*A Cruzada Pró-Infância, entidade filantrópica fundada pela educadora e ativista social Pérola Byington, tem o direito sobre o nome que batiza o hospital que está sendo desativado e não autorizou seu uso no novo prédio.

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