Pedido para suspender vacinação de adolescentes partiu de Bolsonaro – e bagunçou campanha nacional

Ministério da Saúde mentiu ao dizer que OMS não recomenda oferta de imunizantes para essa faixa etária. Conselhos de secretários de saúde e Sociedade Brasileira de Imunizações são contra a mudança

Foto: Cristine Rochol / SES-SC
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O governo federal parece disposto a minar a característica mais importante que o Brasil tem no caminho para vencer a pandemia: uma população que confia nas vacinas e que, em havendo imunizantes disponíveis, os recebe em massa. Ontem o Ministério da Saúde retirou adolescentes de 12 a 17 anos sem comorbidades da lista de grupos cuja vacinação é recomendada. Em nota, disse que a posição “segue evidências científicas e posição da OMS”.

Mas isso é mentira. À noite, o ministro Marcelo Queiroga admitiu que o responsável pela mudança foi alguém que não entende nada de vacinas, nem de OMS, nem de evidências científicas: Jair Bolsonaro. “O senhor tem conversado comigo sobre esse tema e nós fizemos uma revisão detalhada no banco de dados do DataSUS”, afirmou Queiroga, em transmissão online ao vivo com o presidente.

Bolsonaro, por sua vez, disse que apenas levou ao ministro o seu “sentimento”. E, bem ao seu estilo, regou a desconfiança já plantada: “A minha conversa com Queiroga não é uma imposição. (…) A OMS é contra a vacinação entre 12 e 17 anos. A Anvisa, aqui no Brasil, é favorável à vacinação de todos adolescentes com a Pfizer. É uma recomendação. Você é obrigado a cumprir a recomendação?”. Queiroga respondeu: “Não. Eu não sou obrigado”. 

A OMS nunca recomendou não vacinar essa faixa etária. A orientação é apenas a de que estes adolescentes estejam no fim da fila, depois de todas as pessoas em grupos com maior risco – exatamente o que o Brasil vinha fazendo até agora. 

Quanto à suposta falta de evidências – a pasta diz que “os benefícios da vacinação em adolescentes sem comorbidades ainda não estão claramente definidos” –, isso também é mentira. O imunizante da Pfizer/BioNTech, único aprovado até agora pela Anvisa, não apenas teve ensaio clínico de fase 3 para essa faixa etária como já está sendo usada para em vários países.

Existe, sim, uma discussão entre especialistas sobre os (raros) efeitos adversos desse imunizante em pessoas mais jovens. O mais grave deles, a miocardite, é uma condição temporária mais prevalente em pessoas do sexo masculino após a segunda dose. Autoridades de saúde mundo afora levam isso em consideração e, ainda assim, têm entendido que os benefícios da vacinação superam os riscos. Primeiro porque, embora seja mais baixo em adolescentes, o risco de morrer por covid-19 existe – e é bem maior do que o apresentado pela miocardite. Além disso… covid-19 também pode causar miocardite.

Segundo porque a vacinação não é apenas uma medida de proteção individual: as pessoas precisam se vacinar também para proteger quem está ao redor. Com a Delta – muito mais transmissível – isso se complicou um pouco. Mas não deixou de ser verdade. Ainda que essa variante possa provocar mais infecções entre vacinados e que eles possam transmitir o vírus, o papel dessas pessoas na transmissão tem tudo para ser muito menor (veja aquiaqui e aqui, por exemplo). 

Confusão generalizada

O mais grave na postura do Ministério da Saúde talvez nem seja o fato de não recomendar a vacinação desse público-alvo. Governos mundo afora têm tomado decisões diferentes em relação a essa faixa etária com base em suas próprias realidades, e não há nada extraordinário nisso. 

Mas o que aconteceu aqui é de outra ordem. Há apenas duas semanas o Ministério da Saúde havia publicado Nota Técnica recomendando a vacinação de todos os adolescentes a partir do último dia 15. Aqueles sem comorbidades estavam no fim da fila, mas estavam lá. Isso obviamente poderia ser modificado a qualquer momento, se houvesse dados apontando essa necessidade. Mas nenhuma nova evidência surgiu de lá para cá; a posição da OMS tampouco mudou. 

A guinada veio de repente, sem embasamento científico e sem passar pelos conselhos dos secretários estaduais e municipais de Saúde (Conass e Conasems), como seria o rito normal. Além disso, Queiroga e secretários da pasta apresentaram superficialmente, em coletiva de imprensa, informações pouco precisas que põem em xeque a credibilidade das vacinas. O secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, citou até o caso de um jovem morto em São Paulo. Mas a Anvisa, que está investigando o caso, informou que até agora não há nenhum indício de que o óbito esteja relacionado ao imunizante ­– e frisou que mantém a aprovação do produto para essa faixa etária.

Queiroga disse ainda que foram aplicadas mais de 26 mil doses de vacinas não aprovadas pela Anvisa para adolescentes e que há casos de quem recebeu três doses. Tudo isso pode ser verdade, mas não seria motivo para interromper a campanha (erros acontecem desde o começo em todas as faixas etárias). Gestores estaduais e municipais questionam esses números, que podem ser na verdade erros de registro no sistema do Ministério.

O resultado mais imediato da decisão federal foi, como era de se esperar, uma confusão generalizada. Grande parte do país já tinha começado a vacinar os adolescentes – em alguns estados, a campanha começou em agosto – e, na mesma hora, várias cidades mandaram parar.  Outras vão manter. O Conass e o Conasems não recomendam a suspensão. A Sociedade Brasileira de Imunizações também publicou nota se posicionando contra o Ministério: “as justificativas apresentadas [pela pasta] não são claras ou não têm sustentação”, diz o texto.

O presidente do Conass, Carlos Lula, insinuou até que a medida foi tomada apenas porque não há vacinas suficientes. Ele também criticou a condução geral do Ministério na pandemia (“Cada um está fazendo do seu jeito, da sua maneira, porque a gente não tem o ministério como condutor da política neste momento. Como não teve durante a pandemia inteira”) e disse que, na prática, “ninguém vai respeitar a decisão do ministério”. De acordo com ele, isso vai jogar a reputação da pasta “na lata do lixo”.

Pode até ser que a maioria dos estados e municípios decidam não seguir o Ministério. Mas quais serão os efeitos dessa verdadeira campanha antivacina para a população, que só precisa de uma mensagem clara e unificada para se sentir segura? 

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