Para entender a grande onda de depressão e suicídio

Mortes autoinfligidas dobraram em 20 anos e queixas de sofrimento psíquico multiplicam-se nos CAPS. Causa não é apenas a pandemia, mas deterioração das condições de existência. E para enfrentar a crise é preciso ir além da medicação

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O total de mortes por suicídio no Brasil dobrou de cerca de 7 mil para 14 mil nos últimos 20 anos, segundo o Datasus, sem considerar a subnotificação. O número equivale a mais de um óbito por hora, superando as mortes em acidentes de moto ou por HIV. A Organização Mundial da Saúde (OMS) relaciona a tendência ruim da América Latina à piora da pobreza e da desigualdade – que, em 2020, se juntaram com a pandemia. O percentual de pessoas que dizem ter sido diagnosticadas com depressão subiu de 9,6% antes da pandemia para 13,5% em 2022. Alguns dos motivos são o luto, o isolamento social, o medo, as dificuldades de atendimento, sequelas neurológicas causadas pela doença e a piora do cenário econômico, que já vinha se concretizando antes da covid.

Os números indicam que os sofrimentos psíquicos são multifatoriais, segundo a psicóloga Melissa Oliveira, doutora pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fiocruz e professora do Instituto Brasileiro de Reeducação Motora (IBMR). As taxas de suicídio no Brasil são mais altas entre jovens negros de 12 a 28 anos – mesma população mais afetada pela violência policial e do trafico, e ainda a mais encarcerada em presídios. O grupo de idosos com mais de 80 também apresenta taxa elevada de suicídios, principalmente nos países em desenvolvimento. “Vários países da América Latina sofrem com graves retrocessos nas políticas públicas voltadas ao envelhecimento, com aposentadorias precárias e a ausência de instituições para idosos”, explica. 

O sofrimento psíquico não está relacionado exclusivamente às desigualdades e opressões sociais, pois não pode ser “reduzido a um fator único” – mas está vinculado a elas. Em relatório de 2017, a OMS já apontava o Brasil como o país com o maior índice de ansiosos do mundo. Pesquisadores que acompanham dados da rede pública de saúde identificaram que mulheres negras, pobres e faveladas são as que têm buscado serviços da atenção básica com mais frequência, queixando-se de palpitações, angústia severa e insônia. Quando atendidas, elas são diagnosticadas com Transtorno de Ansiedade. 

“Esse diagnóstico não está errado, mas o problema é quando reduzimos o processo de violência social e das condições socioeconômicas ao diagnóstico médico, tornando o problema uma questão individual. Nesse caso, a única terapêutica possível seria o medicamento”, argumenta Oliveira. A questão principal, diz ela, é não tratar o aumento real do sofrimento psíquico como questão meramente médica ou biológica. Já Deivisson Vianna, professor da Universidade Federal do Paraná e vice-presidente da Abrasco, argumenta que o aumento de diagnósticos está relacionado também com a melhora do sistema de saúde nos últimos 20 anos. Nesse caso, o dado refletiria também aumento da notificação. 

Oliveira conta que as queixas nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são parecidas: desemprego, aumento dos preços, baixa do salário, aumento dos juros. Muitas mulheres em situação de vulnerabilidade são, na maioria das vezes, responsáveis pelo cuidado doméstico, de idosos ou crianças, mães solo e têm empregos precários. No campo, o aumento de casos de ansiedade e depressão está relacionado, segundo estudos da Abrasco, ao uso de agrotóxicos, devido a interações biológicas e químicas. 

“Existe sim um aumento do sofrimento –  mas como estamos lidando com isso além da medicação? Hoje, uma geração de pessoas também lida com o fato do planeta estar sendo destruído. Tudo mexe com a psique coletiva, então que resposta coletiva devemos dar?” questiona Vianna. 

Para os especialistas, o fortalecimento da rede de saúde mental pública precisa ser uma prioridade. “O Brasil foi por muitos anos referência na substituição do modelo psiquiátrico fechado, como manicômios e hospitais psiquiátricos, para o modo aberto, de caráter territorial e comunitário”, explica Oliveira. Os CAPS, NAPS, unidades de saúde da família, grupos de artes e cultura, leitos de atenção integral em hospitais gerais e espaços de contenção da crise abertos 24h são estruturas que poderiam ser resposta a essa “nova pandemia”. 

“Políticas que garantam vida digna para cada cidadão são o principal promotor de uma boa saúde mental”, argumenta Vianna. Aumentar os pontos de acolhimento na atenção primária deveria ser uma prioridade, segundo o psiquiatra, que acredita que a superação da “crise de saúde mental” vai além dos diagnósticos, mas toca a “escassez, precariedade e o sucateamento dos serviços públicos”. “Essa é a verdadeira crise de saúde mental que vivemos, que nega aos sujeitos um cuidado digno e resolutivo”, conclui Melissa Oliveira.

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