Pânico desnecessário

Reportagem da Folha sobre doses vencidas tem problemas de apuração, apontam especialistas. Jornal não se retratou

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Na sexta-feira à tarde, a Folha publicou uma reportagem que levou muita gente ao pânico: “Milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid; veja se você é um deles”.

O texto afirma que 26 mil doses do imunizante de Oxford/AstraZeneca com prazo de validade expirado foram aplicadas em 1.532 municípios até o dia 19 de junho.

E destaca Maringá, “reduto eleitoral de Ricardo Barros”, como a “campeã” no uso, com mais de 3,5 mil doses vencidas aplicadas. “Na prática, é como se a pessoa não tivesse se vacinado”, alerta o texto.

Só que a manchete estava errada. Várias prefeituras, inclusive a de Maringá, começaram a publicar declarações contradizendo as informações da Folha, e logo o problema na apuração foi evidenciado, como explicam as notas do Observatório Covid-19 BR e da Rede Análise Covid-19.

Ocorre que a reportagem se baseou no cruzamento de dados de duas bases públicas – DataSUS e Sage – mas não checou o que encontrou. E o Observatório ressalta que a estrutura de dados no Brasil não permite dizer se houve aplicação de vacinas vencidas.

Isso porque, como há muito se sabe, os sistemas de informação têm problemas relacionados ao registro, incluindo atrasos e erros de digitação. É comum que uma pessoa receba a vacina numa data, mas esse dado só entre no sistema muito depois – como acontece com os óbitos, por exemplo. 

“Essas inconsistências, embora importantes e necessitem constante validação dos dados já inseridos, de maneira geral não impactam análises agregadas como, por exemplo, cálculo do percentual da população já vacinada por faixa etária, por apresentarem um volume baixo frente ao total de registros. Porém, tornam-se obstáculos importantes para análises relacionadas aos chamados eventos raros, aqueles que ocorrem com relativamente baixa frequência”, notam os autores.

As 26 mil doses supostamente vencidas são 0,7% de todas as já aplicadas do imunizante da AstraZeneca. O número bate com a frequência esperada de erro em bases de dados da saúde.

Pesquisadores do grupo analisaram as mesmas bases e seus achados sugerem “fortemente” que houve, de fato, apenas problemas nos registros. 

“A aplicação de vacinas no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS é submetida a tripla checagem para datas de validade. Apesar de todo o subfinanciamento e tentativas de desmonte, o SUS segue como referência mundial para campanhas de vacinação. Isso não significa que não possa ter havido vacina aplicada fora da data de vencimento, mas urge cautela antes de se declarar a origem dos problemas enfaticamente, em especial com tal potencial de repercussão e impacto sob a vacinação”, segue o texto.

Quatro horas depois de a reportagem ser publicada, a Folha alterou o título para “Registros indicam que milhares no Brasil tomaram vacina vencida (…)” e acrescentou, no fim da matéria, respostas de secretarias estaduais de Saúde.

No entanto, como observa a Rede Análise Covid-19, a reportagem está protegida por paywall e a maioria da população só tem acesso ao título – que foi amenizado, mas continua assustador.

“A notícia de pessoas sendo vacinadas com vacinas vencidas foi exatamente este caso: um dado publicado às pressas e com uma manchete estilo click-bait [manchete sensacionalista, para atrair cliques]. O resultado? Uma parcela da população com acesso já restrito à vacinação e à informação de qualidade entra em pânico. Outra parcela que já tomou a vacina e não sabe acessar dados com precisão, mais pânico ainda”, lamenta a Rede.

Hoje, três dias após a publicação, a matéria ainda é a segunda mais lida no ranking da Folha. O jornal não reconheceu, em nenhum momento, sua falha na apuração. Não cairia nada mal um pedido de desculpas.

Em tempo: a Folha publicou outra matéria no sábado informando que duas cidades, em São Paulo e na Paraíba, de fato aplicaram doses vencidas. No contexto da confusão suscitada pela reportagem anterior, fica a impressão de que o fato apareceu após a denúncia do jornal.

Não foi assim, a notícia é velha. Ao longo do texto, vê-se que as duas cidades em questão tiveram o problema em abril e maio, mas na mesma época as prefeituras detectaram o engano e as 152 pessoas atingidas foram revacinadas. 

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