O que se sabe sobre o escândalo envolvendo Bolsonaro, Prevent Senior e cloroquina

Segundo denúncia de médicos, operadora de planos de saúde ocultou a morte de pacientes que participaram – sem saber – de estudo sobre a droga

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Por Leila Leal

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“Por favor, não informar o paciente ou familiar sobre a medicação e nem sobre o programa”. Assim, sem meias palavras, Fernando Oikawa, diretor da operadora privada de saúde Prevent Senior, orientou subordinados a usar pacientes como cobaias para testes com cloroquina para o tratamento de covid-19, segundo a denúncia de médicos.

Além da flagrante violação de normas éticas elementares – que prevêem o consentimento explícito de pacientes para participação em testes desse tipo –, a ocultação de mortes entre pacientes submetidos ao tratamento, a publicação de dados não revisados e mesmo falsos, a alteração de prontuários e a coação de médicos estão entre as denúncias que vieram à tona ontem, reveladas pelo jornalista Guilherme Balza em reportagem para a GloboNews

O caso, que repercutiu durante todo o dia, ainda tem ao menos um fio – crucial –  solto: as denúncias dão conta de que o tenebroso “estudo” seria um desdobramento de acordo firmado entre a Prevent e o governo Bolsonaro no início da pandemia para testar e disseminar a cloroquina, a ivermectina e a azitromicina.

Saber se a tratativa de fato exisitu  e, caso confirmada, conhecer especificamente os termos desse acordo, os responsáveis por sua condução e os interesses por trás das negociações é fundamental para elucidar as muitas faces do genocídio. Afinal, até onde vai a explosiva combinação entre desprezo pela vida, negacionismo, sede por lucros e aparelhamento do Estado que é característica da gestão bolsonarista da crise sanitária?

O teor das denúncias

As denúncias reveladas pela GloboNews constam de um dossiê enviado à CPI da Covid por médicos que trabalham ou trabalharam na Prevent. Ontem seria justamente o dia do depoimento de Pedro Batista Júnior, diretor-executivo da Prevent, à comissão. Mas, alegando “falta de tempo” para se preparar, ele faltou. A oitiva foi adiada para semana que vem. Assinado por quinze profissionais, o dossiê que está nas mãos da CPI compila documentos, relatos, prints de mensagens, áudios, e-mails e planilhas que comprovariam, por exemplo, que os responsáveis pela pesquisa reportaram apenas duas, das nove mortes ocorridas entre as “cobaias” do tratamento com hidroxicloroquina associada à azitromicina. Os nomes dos médicos foram mantidos em sigilo por questões de segurança. Alguns deles falaram também à reportagem. 

Realizado em março do ano passado, em São Paulo, o estudo foi, é claro, enaltecido por Bolsonaro. Ele chegou a postar os “resultados” – divulgados antes mesmo da revisão de dados pelos profissionais forçosamente envolvidos no experimento – em suas redes sociais e reforçar como comprovariam o sucesso do tratamento com a droga. Um médico que trabalhava na Prevent disse à GloboNews que o resultado da pesquisa, que teria sido manipulada para comprovar a qualquer custo a eficácia da cloroquina, já estava pronto muito  antes da conclusão do estudo. 

Entre os nove pacientes mortos, seis estavam no grupo que foi submetido ao tratamento com hidroxicloroquina e azitromicina e dois no grupo que não recebeu as drogas. Há, ainda, um outro  paciente que morreu, mas sobre ele as informações não indicam em que grupo estava. Assim, o que se sabe é que houve pelo menos o dobro de mortes entre os participantes que tomaram cloroquina. Mas o artigo com os resultados da pesquisa, divulgado em 15 de abril em preprint (sem revisão por pares), registra apenas duas mortes no grupo que recebeu a medicação. E, ainda assim, diz que elas não teriam sido causadas por covid-19, mas por outras doenças. 

O estudo da Prevent acabou se tornando uma espécie de tábua de salvação para Bolsonaro e sua trupe de cloroquiners. Isso porque, dias antes de sua divulgação, um outro estudo com a droga, esse realizado em Manaus, havia sido suspenso por conta da morte de pacientes. Assim como o estudo conduzido pelos hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês, a pesquisa também não encontrou evidências da eficácia da medicação. 

Bolsonaro, Mayra Pinheiro e muitos outros bolsonaristas, então, não hesitaram em agarrar com todas as forças o estudo da operadora, que, entre outras fragilidades, testou para covid-19 apenas 93 dos 636 pacientes participantes. Isso mesmo: somente se verificou se 14,7% do total de participantes estavam infectados. No fim das contas, menos de 10% deles (62 pessoas)  tiveram resultado positivo.

Um registro: a Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) suspendeu a autorização para realização do estudo depois de constatar que os testes já estavam sendo conduzidos antes de sua liberação formal. É claro que isso também não constrangeu o governo Bolsonaro e a própria Prevent de utilizá-los como base para seguir prescrevendo a cloroquina para pacientes com covid. 

A lista das denúncias é muito mais extensa, e dá conta ainda de que a operadora escondeu mortes por covid usando o subterfúgio de alterar o código de diagnóstico (CID) do prontuário dos pacientes. A desculpa era retirar a informação das fichas após 14 dias da confirmação de infecção, para que as medidas de isolamento pudessem ser interrompidas. Na prática, quando os pacientes se agravavam e morriam, a causa que constava dos documentos oficiais era outra que não covid-19. A reportagem da GloboNews comprovou dois casos em que a doença foi omitida da declaração de óbito dos pacientes. 

Em algum lugar do passado

Em março, o Ministério Público de São Paulo abriu investigação contra a Prevent para apurar prescrição indiscriminada do famigerado “kit covid”, até mesmo para pacientes sem diagnóstico confirmado. Médicos relataram, em suas denúncias, terem sido coagidos a fazê-lo.  Além do MP-SP,  o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil de São Paulo e ANS também abriram investigações.

Uma outra investigação contra a Prevent havia sido conduzida pelo MP-SP ainda no ano passado, essa para apurar se operadora havia omitido óbitos por covid no começo da pandemia e sido negligente nas medidas sanitárias dentro de seus hospitais. Isso porque, nos primeiros meses da crise sanitária, as unidades da rede concentravam mais da metade das mortes em São Paulo A suspeita era de que muitos dos pacientes tivessem dado entrada por outros motivos e, diante da falta de medidas adequadas, se contaminado nos hospitais. Mas, em agosto de 2020, o órgão concluiu que apesar de ter havido irregularidades nas notificações, elas não teriam sido intencionais. 

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