O que muda com o decreto de Bolsonaro

Estados e municípios têm autonomia para definir serviços essenciais, mas documento ainda ameaça quarentenas

.

Este texto faz parte da nossa newsletter do dia 12 de maio. Leia a edição inteira.
Para receber a news toda manhã em seu e-mail, de graça, clique aqui.

O presidente Jair Bolsonaro havia dado a dica no domingo, quando anunciou a apoiadores que em breve aumentaria a lista de profissões “essenciais” durante a pandemia. Na tarde de ontem, detalhou a medida: “Tá pra publicar agora, se bobear já saiu. Eu coloquei hoje, porque saúde é vida: academia, salão de beleza e cabeleireiro também. Isso aí é higiene, é vida (…) E barbearia também”.  Depois, completou: “Academia é vida. As pessoas vão aumentando o colesterol, têm problemas de estresse, vão ter uma vida mais saudável. A questão do cabeleireiro também. Fazer cabelo e unhas é questão de higiene”. O decreto saiu logo depois, em edição extra do Diário Oficial.

A reação do ministro da Saúde Nelson Teich, ao saber da novidade por meio da imprensa durante a coletiva de ontem, foi constrangedora. “Saiu hoje, isso?”, perguntou, meneando levemente a cabeça em sinal negativo e pedindo mais detalhes. Tentou justificar o fato de que sequer foi consultado: “Isso não é atribuição nossa, é do presidente”. Segundos depois, alertado pelo secretaŕio-executivo do Ministério, o general Pazuello, corrigiu-se: “É do Ministério da Economia”. À sua Pasta, disse ele, cabe apenas “ajudar a desenhar os fluxos” para fazer isso “de uma forma que proteja as pessoas”.  É até engraçado, porque o texto do decreto diz que salões, barbearias e academias passam a ser serviços essenciais “obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”…

À primeira vista, a decisão de Bolsonaro parece inviabilizar medidas de isolamento impostas por municípios e estados (inclusive lockdowns). Porém, é preciso lembrar que há tempos o STF julgou que esses entes federativos têm autonomia para definir suas estratégias e fixar os serviços que devem seguir funcionando. E os governadores já começaram a mandar seus recados: pelo menos Rui Costa (BA), Camilo Santana (CE), Helder Barbalho (PA), Flavio Dino (MA) e Renato Casagrande (ES) anunciaram que não vão seguir a orientação federal. A lista ainda pode crescer.

Então o decreto não serve para nada? Serve: para fazer as confusões que o presidente tanto adora, para deixar a população ainda mais perdida sobre em quem confiar, para colocar mais pressão nos governos locais pelo fim do isolamento; em suma: para incentivar o desrespeito às quarentenas.

Aliás, ontem dezenas de caminhoneiros fecharam duas faixas da mais emblemática via da capital de São Paulo, a avenida Paulista. Protestavam contra as medidas de isolamento da prefeitura e do governo estadual. Antes houve uma carreata de vans, e o protesto incuía um caixão com as imagens do prefeito Bruno Covas (PSDB) e do governador João Doria (PSDB)… Como sabemos, os caminhoneiros são uma categoria com quem Bolsonaro faz questão de manter boas relações. Houve cenas preocupantes, descritas na Folha: “Diante do caminhão vermelho, [um capitão da PM] conversou com um dos homens, que disse que não arredaria pé. Escutou uma resposta atravessada do capitão da PM e devolveu no mesmo tom. Diante do apoio dos demais manifestantes, criou-se um impasse. Sentindo que tinha respaldo, o homem vociferou que era oficial do Exército e exigia respeito de um oficial da PM. Em seguida, virou as costas e agiu como se o policial não existisse“.

No limite, pode acontecer que os casos de estados e municípios precisem ser decididos individualmente pela Justiça, como explica na Folha o professor da FGV, Thomaz Pereira. De acordo com ele, se houver conflito entre as regras de municípios, estados e União e a Justiça for provocada, cabe ao magistrado de plantão definir qual decreto deve ser seguido. No programa Roda Viva, o presidente do Supremo Dias Toffoli também foi perguntado sobre isso, mas evitando criticar Bolsonaro, acabou não dizendo muito: “O STF decidiu de acordo com a Constituição. Cabe simplesmente um cumprimento disso. Se essa ou aquela função deve ser definida pelo município, pelo estado ou União, está definido na Constituição. Casos específicos, como o decreto de hoje, me desculpe, mas eu não vou analisar até porque é muito possível que haja alguma judicialização. Me permita não falar fora dos autos”.

Leia Também: