O que falta para termos a Sputnik V

Estudo publicado em revista científica mostra eficácia excelente, mas há barreiras na Anvisa. Governo Bolsonaro quer garantir aprovação

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Foram publicados no periódico The Lancet, com revisão por pares, os resultados dos ensaios de fase 3 com a vacina Sputnik V. São excelentes: ela teve 91,6% de eficácia contra casos sintomáticos da covid-19 e a proteção foi consistente em todas as faixas etárias incluídas, desde os 18 anos até mais de 60. Entre os  mais de 20 mil voluntários do ensaio conduzido em Moscou, foram identificados 78 casos de covid-19, sendo 62 no grupo placebo (que tinha 4,9 mil pessoas) e 16 no grupo que recebeu o imunizante (eram 14,9 mil participantes).

Não foram identificados casos grave ou moderados da doença entre quem recebeu a vacina (contra 20 nos que tomaram o placebo). Houve duas mortes por covid-19 entre os vacinados dias depois da primeira dose, mas os pesquisadores acreditam que eles tenham sido infectadas antes de tomarem a injeção, adoecendo antes de a vacina conseguir fazer efeito. Nenhum efeito adverso grave foi relatado.

Quando o governo russo aprovou essa vacina, ainda em agosto do ano passado, fizemos coro com os cientistas que expressavam preocupação: os resultados das fases 1 e 2 ainda não tinham sido publicados e a fase 3, que examina a eficácia e confirma a segurança, nem tinha começado. Mas agora esses problemas não existem mais – e os números são muito mais do que bons. Ainda falta, porém, conhecermos o protocolo do estudo. 

Além da Rússia, mais de uma dezenas de países já deram autorização emergencial para a Sputnik V, como Argentina, Hungria, Sérvia, Bolívia, Paraguai e Irã. 

Em tempo: a tecnologia é parecida com a da vacina de Oxford/AstraZeneca. O imunizante é baseado em dois tipos de adenovírus que causam resfriado (Ad26 e Ad5). Eles receberam instruções genéticas para a produção da proteína spike do SARS-CoV-2 e foram modificados para invadirem as células, mas sem se replicarem dentro delas. Com sua presença, o sistema imunológico reconhece a proteína spike e aprende a combater o coronavírus. 

Empecilhos brasileiros

Comentamos na segunda-feira que o governo federal não parece inclinado a oferecer qualquer entrave à aprovação da Sputnik V. Na verdade, segundo o Estadão, o presidente quer mesmo agilizar o processo e seus apoiadores já diziam na semana passada que essa poderia se tornar a “vacina do Bolsonaro”.

Então há que se ter cuidado com a tentação de classificar como birra as últimas declarações da Anvisa. Em nota, a agência classificou como “boa notícia” a publicação do estudo sobre o imunizante, mas afirmou que para aprová-la precisa ter acesso aos dados completos gerados no ensaio.  E ressaltou ainda que a versão da vacina cujos resultados foram divulgados é diferente daquela que a União Química quer produzir e vender: “Dessa forma é necessário saber se os resultados encontrados são extrapoláveis, ou seja, se os resultados da vacina líquida a -18°C valem também para a vacina que a União Química quer trazer para o Brasil. Para este tipo de avaliação é necessário estudo de comparabilidade entre os produtos”. A União Química negou a diferença, afirmando que “trata-se de uma única vacina”. 

Basta uma olhada rápida no artigo do Lancet para checar que está lá: “Neste estudo, estudamos a forma líquida da vacina, que requer armazenamento a -18 ° C“. A Rússia também aprovou outra versão, que pode ser guardada em geladeiras comuns, mas não foi esta que participou dos ensaios. Fica a dúvida sobre se a forma que a União Química pretende produzir é mesmo essa, porque, nesse caso, a logística complica. Caso se trate de versões diferentes, aí há que se saber se faz sentido a Anvisa questionar o imunizante por esse motivo neste momento em que precisamos desesperadamente de vacinas.

Um problema adicional que já mencionamos aqui é que essa vacina não passou por ensaios de fase 3 no Brasil, o que, segundo as regras atuais da agência reguladora, é condição para a autorização emergencial. Mesmo que um estudo começasse agorinha, ainda levaria meses até conhecermos os resultados. 

Será que não é hora de rever esta regra? Em longo artigo publicado no Jota, o professor do Insper Thomas Conti defende que sim: “Pragmaticamente, a regra é danosa pois impõe a todos os laboratórios uma burocracia muito grande em tempo e dinheiro que eles não precisam enfrentar em outros países”, diz ele, que publicou o texto ainda antes de os resultados da Sputnik V saírem. Como há (e haverá) outras vacinas promissoras em testes fora do Brasil, esse empecilho pode se tornar cada vez mais problemática. O imunizante da Novavax, por exemplo, pode nunca ser aplicado aqui por esse motivo. Segundo o Estadão, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, está trabalhando em um projeto para sustar a determinação.

É um caso a se avaliar. No artigo sobre a Sputnik V publicado ontem, os pesquisadores russos reconhecem que no ensaio conduzido em Moscou 98% dos participantes eram brancos, e pode haver diferenças para receptores de outras etnias. Mais que isso, temos agora o problema das variantes. Recentemente, vimos como a vacina da Novavax apresentou eficácias muito distintas no Reino Unido e na África do Sul, provavelmente por conta das variantes do vírus que circulam mais em cada lugar. Não seria nada mau conhecer os resultados exatos para a nossa população. Só que, sem jamais ter tomado as decisões corretas para conter o coronavírus, o Brasil está se afundando nele em alta velocidade. A única tábua de salvação são as vacinas, e qualquer imunizante seguro é, afinal, melhor do que nenhum…

Seja como for, agora vai crescer a pressão pelo sinal verde à União Química, cujo lobby sobre os governos estaduais e federal já era pesado. Seu diretor de assuntos internacionais, Rogério Rosso, chegou a dizer ao Globo que espera uma aprovação nas próximas “horas” e que a publicação do artigo “dizima” a necessidade de prestar mais informações. Se a aprovação vier, resta saber se a empresa vai mesmo conseguir cumprir sua ambiciosa meta de produção: 150 milhões de doses este ano.

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