Covid: o experimento secreto dos médicos bolsonaristas

Surge, em Gramado(RS), novo elo do caso em que pacientes foram submetidos, sem saberem, a “tratamento” com base na proxalutamida — a “nova cloroquina”. Ação sequer foi informada às autoridades responsáveis. MP investiga

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MAIS UM?
Pode ter ido mais longe o suposto ensaio clínico clandestino com a proxalutamida, a “nova cloroquina” de Bolsonaro, no Rio Grande do Sul. O Ministério Público Federal do estado abriu um inquérito civil público para apurar se os testes irregulares em pacientes com covid-19 aconteceram também em um hospital na cidade de Gramado no início deste ano, segundo o jornal gaúcho Zero Hora

A suspeita do MPF é que o experimento faça parte do mesmo “estudo” conduzido no  Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre, que também é alvo de investigação. As primeiras denúncias apontam fragilidades na obtenção do consentimento dos pacientes para participação na “pesquisa” e a ausência de autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e da Anvisa, além da infração das normas sanitárias no uso da droga. 

A nova investida do MPF foi motivada por uma entrevista concedida por Marcio Slaviero, superintendente do Hospital Arcanjo São Miguel, de Gramado, a uma rádio local em março. Na ocasião, ele teria mencionado que a instituição conduzia uma “pesquisa” com a proxalutamida para tratar pacientes internados com covid-19. Segundo o jornal, ele chegou a informar a duração dos testes – 20 dias – e afirmou ter a “impressão” de que os resultados seriam positivos, após alguns pacientes terem respondido bem ao “tratamento”. 

Como contamos aqui, após o escândalo a Anvisa decidiu suspender temporariamente a  importação e o uso de produtos que contenham a droga – um medicamento experimental contra o câncer de próstata – para a realização de pesquisas em humanos no país. A decisão, unânime, foi tomada pelo órgão no início deste mês. Na ocasião, a Anvisa informou ainda sobre a abertura de investigação e a instauração de um processo administrativo para apurar possíveis irregularidades na apresentação dos documentos necessários à obtenção da licença para importação do medicamento. 

Um lembrete: o major-médico Christiano Perin, chefe da UTI do Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre na época dos supostos experimentos, se esquivou das acusações e negou coordenar a iniciativa. Ele citou  o endocrinologista Flávio Cadegiani e o infectologista Ricardo Zimerman como responsáveis pelo experimento. Os dois, conhecidos nas redes sociais por defenderem o “tratamento precoce” e questionarem a eficácia das vacinas, participaram da pesquisa que embasou a criação do TrateCov, aplicativo do Ministério da Saúde que receitava cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina a pacientes supeitos de infecção por covid e que durou apenas dez dias no ar. 
NÚMEROS QUE ENGANAM
A coluna de Mônica Bergamo trouxe ontem, na Folha, duas informações a partir de um levantamento da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. A primeira, e mais relevante, é que as hospitalizações na cidade caíram 68% desde o fim de maio, quando havia 1.993 pessoas internadas – sendo 1.132 em UTIs, que operavam com lotação máxima. Esses números de maio contrastam com os registrados agora, no último dia 13: 629 internações, sendo 300 em UTIs. Uma redução drástica.

A segunda informação é que, dos pacientes hospitalizados neste momento, 51,6% já tinham tomado as duas doses das vacinas contra a covid-19 (ou a dose única da Janssen) e 30,1% tinham tomado a primeira dose, mas ainda não a segunda. Ou seja, mais de 80% estavam ao menos parcialmente protegidos. Esse tipo de dado causa um estranhamento: se as vacinas são muito eficazes contra hospitalizações e mortes, não deveria ser o contrário – não deveria haver muito menos vacinados nos hospitais?

Na verdade não, ou pelo menos não nesse caso, quando o percentual de vacinados na população já é muito alto. Na cidade de São Paulo, praticamente todos os adultos já tomaram a primeira dose (o percentual já até ultrapassa os 100%, mas porque envolve pessoas de outros municípios que se vacinaram lá) e 65% estão totalmente vacinados; além disso, 81% dos adolescentes receberam a primeira dose. 

Sabemos que nenhuma vacina oferece proteção completa, então o risco de hospitalização sempre existe. No limite, se 100% da população estiver vacinada, uma única internação vai significar que 100% dos internados estão vacinados. “A adesão à vacinação foi total na cidade. Portanto, muitos dos internados, a partir de agora, estarão vacinados”, explica, ainda na coluna, o secretário-adjunto Luiz Carlos Zamarco, que coordenou o trabalho.

O importante é ver que, proporcionalmente, a população não vacinada vai ter muito mais internados. Por exemplo: num grupo de mil pessoas com uma cobertura parecida com a de São Paulo, em que 98% tenham tomado pelo menos a primeira dose, teríamos 980 vacinados (parcial ou totalmente) e 20 não vacinados. Imagine que, neste grupo, quatro pessoas vacinadas estão no hospital, contra apenas uma sem vacina. Isso significa que 80% dos hospitalizados haviam recebido a vacina.

Porém… Essas quatro pessoas são apenas 0,4% do grupo vacinado. Já a única pessoa sem vacina que está no hospital significa 5% dos não-vacinados – assim, o risco de precisar se hospitalizar nesse grupo é quase 13 vezes maior. O exemplo é hipotético, mas serve para sublinhar o que se precisa ter em mente para entender números que, à medida que a vacinação avança, devem se tornar cada vez mais comuns.

Em tempo: o Instituto de Pesquisa Clínica Carlos Borborema divulgou esta semana os primeiros resultados do CovacManaus, um estudo de acompanhamento de cinco mil pessoas com comorbidades vacinadas na capital amazonense. Após seis meses, 2,6% dos participantes tiveram uma infecção confirmada por covid-19, 0,1% foram hospitalizadas e apenas uma pessoa morreu (0,02%).
APÓS O REPRESAMENTO
O Brasil voltou a registrar uma alta nos óbitos diários. Ontem foram 793, e isso fez a média móvel ficar novamente perto de 600. Provavelmente isso se deve a um represamento de dados na semana passada, por conta do feriado do dia 7 de setembro. É comum que durante e após os feriadões haja uma redução falseada dos números por conta do ritmo reduzido nos registros e, depois, quando eles enfim são feitos, aconteça um aumento brusco.

Falando nisso, vários estados têm relatado problemas na notificação de casos, o que tem tornado difícil saber exatamente como está a curva nos últimos dias.

Mas o último boletim Infogripe da Fiocruz, divulgado ontem, confirma sinal de queda nos casos notificados de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) na tendência de longo prazo (que considera os dados das últimas seis semanas) e de estabilidade na tendência de longo prazo (esta considera as últimas três semanas). Claro que essa notícia precisa ser dada com a ressalva de sempre: apesar da tendência de redução, os números ainda são muito altos.
O QUE NÃO DEVIA FICAR DE FORA
Acontece na semana que vem a Cúpula sobre Sistemas Alimentares, convocada pela ONU. Se doenças não-transmissíveis já superaram as infecciosas como principais causas de mortes no mundo, e se várias evidências associam alimentos ultraprocessados a essas doenças, era de se desejar que o encontro discutisse seriamente formas de reduzir tal consumo.

Mas aparentemente isso não vai acontecer, como aponta a reportagem d’O Joio e o TrigoE não é por falta de pressão dos pesquisadores da área. Em junho, um documento sobre os malefícios dos ultraprocessados produzido pelo Nupens e pela Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis (ambos da Faculdade de Saúde Pública da USP) foi enviado a uma série de pessoas envolvidas com a organização da cúpula. No mês seguinte, um grupo de especialistas de peso – como o brasileiro Carlos Monteiro e a estadunidense Marion Nestle – publicou um chamado especialmente dirigido à Cúpula no BMJ, enviando-o também a representantes das Nações Unidas. Mas, até agora, eles não parecem ter surtido efeito.

Organizações da sociedade civil criticam ainda a falta de representatividade no encontro, que contará com poucos atores de países em desenvolvimento. Em julho, várias entidades realizaram uma cúpula alternativa: a Contra-Mobilização dos Povos para Transformar os Sistemas Alimentares Corporativos.

O agronegócio é também um tema delicado. O Joio nota que a enviada especial da Secretaria Geral da ONU para a Cúpula, Agnes Kalibata, preside a Aliança por uma Revolução Verde na África – que, por sua vez, promove os interesses do agronegócio no continente.

Mesmo assim, a necessidade de promover mudanças na agricultura mundial é um tema que ao menos está em pauta na ONU. Segundo o Valor, três agências das Nações Unidas vão pedir na Cúpula que os países mudem totalmente os US$ 470 bilhões oferecidos em subsídios oferecidos à agricultura todos os anos. Segundo a FAO (a agência para agricultura e alimentação), 87% desses recursos têm efeito distorcido, levam à ineficiência, prejudicam o meio ambiente e a saúde humana e são distribuídos de maneira desigual, colocando os grandes negócios à frente dos pequenos produtores. Produtos não saudáveis, como o açúcar, e com emissões intensivas de gases do efeito estufa, como a carne, recebem os maiores apoios em todo o mundo. 

As agências pedem que, nos países de alta renda, sejam redirecionados os subsídios hoje dados às indústrias de carne e laticínios de grande porte. Nos mais pobres, que os subsídios a agrotóxicos e à expansão de monoculturas sejam revertidos para outros fins.
UM DRIBLE
Ontem, finalmente, o Exército divulgou o extrato do processo disciplinar que apurou a participação do general da ativa e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello em ato político. Como se sabe, em maio deste ano ele subiu ao palanque de uma manifestação em apoio a Bolsonaro no Rio, sem autorização de superiores. A divulgação do extrato cumpre determinação da Controladoria Geral da União, mas frustra expectativas de acesso à informações concretas sobre a decisão do Ministério Público Militar (MPM) que, em tempo recorde, absolveu o general da acusação de crime militar. 

O documento tem apenas duas páginas e, segundo O Globo, traz um resumo superficial do caso, confirmando que a íntegra do processo pode permanecer em sigilo. O jornal havia feito um pedido ao Exército, baseado na Lei de Acesso à Informação, que foi negado. O argumento foi de que os documentos seriam de caráter pessoal e, por isso, ficariam sob sigilo por 100 anos. A CGU acatou a argumentação do Exército e, considerando que a exposição do caso poderia abalar a imagem de Pazuello, a hierarquia e a disciplina das Forças Armadas, manteve o segredo quanto à íntegra do processo. 

Ficou decidido que bastaria a divulgação do extrato, mas mesmo isso desagradou o Exército. A força armada tentou protelar o quanto pôde e mesmo reverter a decisão por meio de recurso, mas não conseguiu. Aos 45 minutos do segundo tempo, divulgou o extrato, que em tom reiterativo informa rapidamente a decisão de “acolher as justificativas/razões de defesa apresentadas e, considerando os normativos de regência” e arquivar o processo, sem mencionar os argumentos apresentados pela defesa de Pazuello ou qualquer outra informação relevante sobre as investigações.

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