Menos Médicos

A notícia da saída de Cuba do Programa Mais Médicos veio na quarta-feira e as reportagens, artigos e discussões se espalharam durante todo o feriado.

Médico cubano com sua paciente no sertão sergipano. A foto é de Araquém Alcântara, que percorreu dezenas de cidades documentando o programa e publicou um livro com o resultado.

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A notícia da saída de Cuba do Programa Mais Médicos veio na quarta-feira e as reportagens, artigos e discussões se espalharam durante todo o feriadão. Esse e outros temas aqui, em 13 minutos.

19 de novembro de 2018

MENOS MÉDICOS

Para qualquer pessoa que tenha acompanhado a trajetória recente e a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro, o fim da parceria com Cuba no Programa Mais Médicos não surpreende. Mas talvez não se esperasse que isso acontecesse ainda mais de um mês antes da posse do novo presidente, e por iniciativa do governo cubano.

A notícia chegou na quarta-feira e já rendeu inúmeras reportagens, artigos e, é claro, milhares de opiniões nas redes sociais. A nota do Ministério da Saúde de Cuba diz que o povo brasileiro saberá a quem responsabilizar pela decisão. Diz que os motivos são os questionamentos de Bolsonaro sobre a competência dos médicos cubanos, além da exigência de revalidação de seus diplomas e da contratação individual – não mais por meio da Opas -, com pagamento integral, sem retenção para o governo cubano.

O texto ainda diz que desde o início do Mais Médicos, em 2013, mais de 20 mil profissionais cubanos já atenderam a 113 milhões de brasileiros em mais de 3,6 mil municípios, que com o Mais Médicos 700 municípios tiveram um médico pela primeira vez na história, e que as ameaças às alterações no termo de cooperação firmado com a Opas são inaceitáveis. Uma pesquisa da UFMG mostra que o programa é aprovado por 94% dos usuários. Pacientes entrevistados pelo Uol dizem que preferem os profissionais de Cuba. “Eles vão do fio de cabelo ao dedo do pé. Examinam tudo, perguntam tudo e atendem a gente a qualquer dia e horário”, diz uma delas.

A saída é economicamente ruim para Cuba. A cada ano, dos 14 bilhões de dólares que Havana arrecada com exportações de bens e serviços, 11 bilhões vêm do envio de profissionais de saúde para o exterior. Vão deixar de entrar 332 milhões de dólares por ano. De acordo com o texto do governo, atualmente, há médicos cubanos prestando serviços em 67 países. A nota do governo enumera: ao longo dos últimos 55 anos, já foram 600 mil missões internacionais em 164 países, envolvendo 400 mil trabalhadores da saúde. Em muitos lugares, os países não pagam nada.

Na sexta-feira, o presidente eleito encerrou uma entrevista coletiva no 1º Distrito Naval, no Rio, quando perguntaram sobre isso. “Como o assunto saiu da área militar, quero agradecer a todos vocês aqui”, disse. A entrevista ainda não tinha chegado aos cinco minutos, segundo o Estadão. Mas, antes de encerrar, ele disse: “Nunca vi uma autoridade no Brasil dizer que foi atendido por um médico cubano. Será que devemos destinar aos mais pobres profissionais, entre aspas, sem qualquer garantia de que eles sejam realmente razoáveis, no mínimo? Isso é injusto, é desumano”. Prometeu dar asilo aos que quiserem pernanecer aqui.

Bolsonaro tem dito que o programa é injusto para os trabalhadores cubanos, que sofrem “confisco de salário”,  e que isso é “trabalho escravo para a ditadura”. O argumento é exaustivamente repetido por seus apoiadores. E, no Estadão, uma reportagem diz que ao menos 150 desertores cubanos do Mais Médicos estão pedindo na Justiça o direito de ficar aqui e clinicar de forma independente. A situação foi bem reportada há dois anos, quando Cuba decidiu não prorrogar o contrato dos profissionais que estavam aqui desde 2013. Esta matéria do El País fala da insatisfação de médicos que queriam continuar aqui e não iam mais poder. No início deste ano, a Agência Públicatambém falou sobre os que reclamam das condições do contrato. São 2,3% do total.

Bom, o Mais Médicos nunca foi aceito por unanimidade. Pelo contrário, sua implantação foi talvez a batalha mais dura do primeiro governo Dilma. Mas a preocupação com a integridade dos médicos cubanos não era realmente uma questão. Como esquecer a campanha de vários profissionais e representantes da categoria contra o programa, quando se chegou a dizer que as médicas pareciam empregadas domésticas? Ou as tristes imagens de quando médicos brasileiros recepcionaram os cubanos no aeroporto com xingamentos e vaias?

Naquela épocaBolsonaro protocolou uma ação no STF pedindo a suspensão da MP que criou o Mais Médicos. “Qualquer cubano antes de ter qualquer profissão é um agente do Estado, que tem um compromisso com a ditadura cubana”, disse ele, em pleno Congresso, no mesmo ano, defendendo que o programa levaria a ter  “células, centenas de Araguaias”, no Brasil. “Não quero meu país com essa ideologia aí. Não quero ditadura no meu país, vocês não conhecem ditadura (…) É a ditadura se impondo no nosso país de maneira  pacífica (…) Minha posição é contrária, por posições ideológicas, sim”, completou, depois de ridicularizar a Comissão da Verdade que tratava da ditadura brasileira. Em coluna no Globo, Bernardo Mello Franco recorda declarações hostis de Bolsonaro sobre isso.  “Vamos expulsar com o Revalida os cubanos do Brasil”, disse em agosto deste ano. Mas agora afirma que a decisão de Cuba é “unilateral” e “irresponsável“. E garantiu que dia 1º de janeiro vai “apresentar o remédio para isso“. Também afirmou que, se já fosse presidente, exigiria um “Revalida presencial”: “Assistir o médico assistir o povo. Porque o que temos ouvido são muitos relatos de barbaridades“, disse, sem explicar quais são as barbaridades.

Já o Conselho Federal de Medicina , que sempre foi contrário ao programa, continua sustentando que há médicos suficientes no Brasil, mas falta assegurar condições de trabalho adequadas: “infraestrutura de trabalho, apoio de equipe multidisciplinar, acesso a exames e a uma rede de referência para encaminhamento de casos mais graves”. Como disse a sanitarista Ligia Bahia na Rádio CBN, essa é uma discussão “quase eterna” e, embora sejam medidas necessárias, não são projetos para o curto prazo.

Verdade é que o número de cubanos no Programa vinha diminuindo gradativamente – eles já representaram cerca de 80% do total, e hoje eram 45,6%. Ainda é muito, e isso apesar de o processo seletivo ter uma ordem de preferência: primeiro são chamados médicos com registro no Brasil (formados aqui ou com diploma revalidado), depois brasileiros formados no exterior e, só então, estrangeiros formados fora. E Monica Bergamo recordou, na Folha: no ano passado, o Ministério da Saúde abriu concurso para selecionar apenas brasileiros. Foram 6.285 inscritos para 2.320 vagas… Mas só 1.626 foram trabalhar de fato, e 30% abandonaram o trabalho antes de um ano de serviço.

Hoje, há mais de 1,6 mil vagas não preenchidas. Se somadas com as dos cubanos, haverá um buraco de cerca de 10 mil profissionais. Em nota conjunta, a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e o Conselho Nacional dos Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) afirmam que a rescisão do contrato vai gerar “um cenário desastroso”, pedem que o governo de Bolsonaro reveja seu posicionamento e mantenha as condições atuais de contratação. As entidades dizem que seriam afetadas 3,2 mil cidades. Os mais prejudicados seriam os povos indígenas: 90% do atendimento a esse grupo é feito por cubanos. Segundo esta matéria do Estadão, a região que mais vai perder médicos vai ser o Nordeste, com quase três mil baixas. E, se a promessa de exigir o Revalida de todo mundo se cumprir, o Brasil vai perder ainda mais 3,3 mil profissionais.

As prefeituras também estão preocupadas. O Conasems (que reúne secretários municipais de Saúde) estima que pelo menos 611 cidades devem ficar sem médicos a partir do próximo ano. Nelas, só há médicos cubanos atualmente. “O Conselho Federal de Medicina assegura que há médicos disponíveis no Brasil. Vamos rezar para que todos se inscrevam”, afirmou Mauro Junqueira, presidente do Conasems.

E a Associação Médica Brasileira critica o programa, argumentado que ele deixou o Brasil “submisso aos humores” de Cuba. Propõe usar médicos das Forças Armadas no lugar dos cubanos. Em agosto de 2013, a entidade já tinha protocolado ação direta de inconstitucionalidade no STF pedindo a extinção do programa. A ação foi rejeitada por seis votos a dois.

Ainda na quarta, o Ministério da Saúde brasileiro lançou nota afirmando que iria convocar, nos próximos dias, edital para médicos que queriam ocupar as vagas deixadas pelos cubanos. Deve haver uma coletiva de imprensa sobre isso no início desta semana. E o atual ministro da Saúde, Gilberto Occhi, deve se reunir com a equipe de transição. Uma das propostas é chamar os estudantes formados pelo Fies para ocupar as vagas.

Alguns médicos já foram embora. Quase 200 desembarcaram em Havana na sexta (tem vídeo com depoimentos).

E em meio a muitas críticas, há elogios. Vêm dos EUA.

MÉDICO DE FAMÍLIA

Pela semana da consciência negra, na Folha, Ricardo Kotscho descreve a rotina de Roberto Trindade, médico de família do SUS. Negro, de família pobre, ele conseguiu estudar Medicina em Cuba por uma parceira com o curso de pré-vestibular social que fazia. Voltou há nove anos e é conhecido na unidade em que atua pela atenção com os pacientes. “Não tenho plano de saúde particular. Só uso o SUS. Como vou acreditar numa coisa que não sei como funciona?”, diz.

TELEDIAGNÓSTICO

E crescem os negócios ligados ao atendimento remoto na saúde, diz matéria da Folha. São coisas como diagnósticos por videoconferência e lembretes para tomar remédios.

DOENTES DE MEDO

A situação das favelas cariocas, com grande ênfase na saúde, foi pauta das jornalistas Caroline Almeida e Julianne Gouveia na Pública. A reportagem conversou com moradores da Rocinha, que há pouco mais de um ano está mais violenta após um racha em facção criminosa, e analisou uma pesquisa da Fiocruz que mostrou o impacto da violência armada nas condições de vida dos moradores, a partir de entrevistas com pessoas do Jacarezinho, Manguinhos e Maré. O sofrimento psíquico foi um dos principais impactos apontados por eles, e  80% disseram que a violência armada afeta sua saúde, de suas famílias e de pessoas próximas.

Estima-se que metade dos moradores de favelas cariocas sofram de depressão. mas muitos não procuram ajuda. Além do estigma de que psicólogos e psiquiatras são para “malucos”, tem o fato de que a naturalização da violência faz com que as pessoas deixem de relatar sintomas como insônia, pesadelos, ansiedade e pânico durante atendimento médico. Também há dificuldades de circulação, justo por conta da violência. Não é coincidência que, na Rocinha, um CAPS tenha tido redução de 45% de novos usuários no último ano, justo quando a violência se agravou.  Nessa favela, há nove profissionais de saúde mental para dar conta de dezenas de milhares de moradores.

“O cotidiano dos moradores da Rocinha é pior do que, por exemplo, o de um soldado norte-americano, onde a maioria dos estudos é desenvolvida. Um soldado que vai atuar nas operações do Irã ou do Iraque é treinado para aquilo. Ele tem um suporte. Ele vai para a missão e volta. A população civil não tem treinamento para isso. Eles estão numa situação de impotência muito maior”, diz o  psiquiatra, professor da UFRJ e pesquisador do Laboratório Integrado de Pesquisas sobre Stress (Linpes/UFRJ) William Berger.

“A operação foi um sucesso”: na piauí, Caio Barreto Briso escreve sobre a recente operação na Maré, que durou 17 horas, matou cinco pessoas e feriu outras nove.

E relatos de abuso e tortura na intervenção federal no Rio estão na capa da Época.

SEM ASSISTÊNCIA

Qualquer unidade do SUS deve oferecer a vítimas de violência sexualtratamento profilático – para evitar DSTs e gravidez indesejada – e, no limite, aborto legal, mesmo sem boletim de ocorrência. Mas na prática, não é o que acontece. Muitas vítimas não sabem disso, outras esbarram em empecilhos na própria rede que deveria acolhê-las.  A matéria do El País dá exemplos de orientações ruins ou insuficientes vindas de centros de proteção à mulher e delegacias da mulher e mostra que, no fim das contas, vítimas demoram a ser assistidas, ou deixam de sê-lo, devido à falta de informação e falhas no sistema.

A VALE E SEUS DESASTRES

A Justiça estabeleceu que a Vale deve pagar indenizações a comunidades indígenas xikrin e kayapó, por danos ambientais e à saúde no sul do Pará. Deve ser um salário mínimo por indígena, retroativos a partir de 2015, o que vai representar mais de R$ 100 milhões no total. E as atividades de mineração da unidade de Onça Puma devem ser paralisadas até que ela cumpra suas obrigações socioambientais, com programas migratórios e compensatórios em favor das etnias atingidas. A empresa vai recorrer.

Enquanto isso, municípios de Minas Gerais e Espírito Santo afetados pela lama da Samarco tiveram uma oferta de R$ 53 milhões em troca de fim das ações judiciais em curso.

CARVOARIA

Um menino de cinco anos sofreu queimaduras muito severas depois de cair em uma caieira (espécie de forno artesanal), numa carvoaria no Maranhão. Ele acompanhava o pai, que tinha saído para pegar carvão. Está na UTI. O pai e mais duas pessoas, que entraram no forno para retirar a criança, também estão queimados.

SEM ÁGUA

Assim deve ser um futuro não muito distante em cidades indianas. O recurso já está faltando, e um relatório recente aponta que 21 delas vão sofrer com a falta d’água até 2020, o que vai afetar 100 milhões de pessoas. Déli, que tem 29 milhões de habitantes e deve se tornar a maior megalópole do mundo em 2018, é uma delas.

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