Lula: no SUS, uma pista para reconstruir o Brasil

Ao reunir-se com ex-ministros da Saúde, pré-candidato vislumbrou a possibilidade de o país reerguer-se a partir dos serviços públicos – e de sua contraface industrial. Estratégia poderia envolver América do Sul e marcar a volta do Brasil ao debate dos grandes temas globais

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Despontou, na última terça-feira (18/1), mais um sinal de que o SUS, por tantos anos desprezado e diminuído, pode ser reinventado e – mais que isso – indicar rumos para a reconstrução do Brasil. O candidato à Presidência que lidera até o momento todas as pesquisas de intenção de voto, Lula, protagonizou um encontro emblemático. Reuniu seis ministros da Saúde do período pré-20161. O encontro foi muito além de uma troca de diagnósticos sobre as perspectivas sanitárias do país na pandemia. Suscitou ideias que, se adotadas, terão desdobramentos em três frentes. Permitirão retomar a Reforma Sanitária, em novos tempos e novas bases. Desencadearão uma nova estratégia de industrialização, agora impulsionada pela garantia de serviços públicos de excelência. Reverterão o isolamento internacional em que o país está metido, após três anos de governo terraplanista. O diálogo sobre estes pontos fez surgir, em esboço, uma ideia que pode ser igualmente marcante: realizar, ainda este ano, uma Conferência Nacional de Saúde, para tornar coletiva a construção dos novos rumos.

Realizado na Fundação Perseu Abramo, em São Paulo, o encontro foi aberto por Arthur Chioro. Depois de expor sua visão sobre a tragédia pandêmica do Brasil – causada principalmente, a seu ver, por negligência e sabotagem explícita – ele passou a palavra a seus colegas. Nesta fase, sobressaíram duas linhas de análise. A partir de meados do ano passado, a melhor tradição do sanitarismo brasileiro inverteu o jogo e interrompeu a catástrofe, ao conquistar as vacinas e contar com a estrutura capilarizada do SUS para ditribuí-las. No entanto, as perspectivas são incertas, porque não está assegurado que a ômicron ponha fim à pandemia e continua havendo espaço político para o obscurantismo – como demonstra a novela da vacinação infantil.

Lula interveio no momento seguinte, e sua fala eletrizou os ex-ministros. Frisou a centralidade das políticas e serviços públicos, numa estratégia de reconstrução nacional. Reconheceu a condição singular da Saúde, que resgatou, durante a pandemia, a potência de conceitos como público, solideriedade e comum. E projetou que, em sua eventual volta ao governo, sinalizaria a importância destas ideias com um primeiro grande passo: garantir e ampliar a produção nacional de vacinas, em laboratórios como os da Fiocruz e Butantã.

José Gomes Temporão pôs então na roda um tema que ganha corpo no debate econômico pós-neoliberal. O fortalecimento do SUS, do qual as vacinas são símbolo, será ainda mais sólido se estiver articulado com a construção de um complexo econômico e industrial da Saúde. Na gestão do ministro foram dados alguns passos para isso. Mas a ideia de disciplina fiscal rígida, que prevaleceu mesmo nos governos de esquerda, restringiu o alcance da proposta. Agora o ambiente parece ser outro, como mostram por exemplo os mega-planos de investimento de Biden, nos Estados Unidos. Na reunião de terça, a ideia pareceu ter consenso.

Em tempos de crise civilizatória e centralidade da luta contra a extrema direita, Lula acrescentou a dimensão internacional. Disse ver na garantia do direito às vacinas um objetivo capaz de sensibilizar as maiorias do planeta. Seu insight pode sugerir um cenário curioso: em contraposição ao movimento antivaxx, forte na Europa caucasiana, surgiria uma coalizão de forças afirmando o direito à imunização da metade dos seres humanos (não brancos, em sua grande maioria) hoje sem acesso aos imunizantes. Mas o ex-presidente, pragmático, concentrou seu foco na América do Sul, onde a vacinação tem forte apelo popular. Nos últimos tempos, Argentina e México deram passos iniciais importantes na produção de vacinas. Parcerias com eles não poderiam sinalizar, ao mesmo tempo, a possível integração sulamericana e uma lógica de cooperação pela Saúde alternativa à das corporações farmacêuticas.

Na terça-feira, quando Lula e os seis ex-ministros se encontraram, o Brasil vivia a explosão dos casos de ômicron. Graças à vacinação (e às particularidades da nova variante), o clima não era de pânico – e sim de reinvenção. E foi neste contexto que emergiu a seguinte ideia: não seria estimulante realizar, ainda em 2022, uma Conferência Nacional de Saúde extraordinária? Ela não serviria como um convite ao vasto movimento sanitário, que se estende por todo o país, para somar-se a esta reflexão sobre virar a página e construir o novo.

Alguém lembrou: esta é a proposta que faria, neste momento, Sérgio Arouca. Era uma referência ao personagem que melhor sintetizou a Reforma Sanitária. Teria 80 anos hoje. O fato de ser lembrado — em seu quixotismo mágico e macunaímico, que abriu espaço para a criação do SUS – é sinal de podem vir ventos bons por aí.

1Participaram Humberto Costa, José Saraiva Felipe, José Agenor Álvares da Silva, José Gomes Temporão, Alexandre Padilha e Arthur Chioro

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