Dois vespeiros

Apoiado pela Fundação Bill & Melinda Gates e com parceria pra lá de próxima com The Lancet, Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde parece jogar fora das regras da comunidade científica

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O Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde da Universidade de Washington faz algumas das pesquisas mais influentes do mundo. Ele se tornou a referência para Casa Branca no monitoramento de cenários da covid-19. E justamente essa atuação parece ter sido a gota d´água para um incômodo que vinha crescendo na comunidade científica há algum tempo.

Em seu modelo epidemiológico, o instituto projetou para os EUA uma crise muito menos severa do que outras instituições, desenhando até um fim em… junho. Essas previsões foram divulgadas em março, e largamente usadas por Donald Trump – e aí está outra característica bastante heterodoxa do IHME (como é conhecido na sigla em inglês): projeções com meses de antecedência, ao contrário dos modelos que preveem apenas semanas no futuro. Depois de errar tudo, o instituto corrigiu seu modelo. Mas não divulgou essa substituição. Seu diretor, Chris Murray, teria dito ‘a todo mundo’ que seus números pioraram de uma hora para outra só por conta da flexibilização das medidas de isolamento social.

Uma reportagem deliciosamente provocativa do site The Nation afirma que os métodos não convencionais que seriam capazes de manchar a credibilidade de outros institutos de pesquisa parecem não arranhar a imagem do IHME, que ficou mais conhecido na última década. E liga essa influência aos mais de US$ 600 milhões em financiamento da Fundação Bill & Melinda Gates – “uma soma praticamente inédita para um instituto de pesquisa acadêmica”, nota o repórter Tim Schwab – e, outro vespeiro: ao apoio Richard Horton, o editor-chefe da Lancet.

“Embora a maioria dos estudiosos tenha a sorte de publicar um artigo de pesquisa no The Lancet durante uma carreira de décadas, Murray do IHME publicou mais de cem. A relação entre The Lancet e o instituto foi ainda mais enfatizada no ano passado, quando Murray indicou Horton para receber o Prêmio Roux de US$ 100 mil do IHME. Foi um conflito de interesses marcante que levantou sobrancelhas entre os estudiosos, mas praticamente nenhuma crítica pública. Desafiar Horton pode significar excluir futuras oportunidades de publicação em um jornal importante”, diz a reportagem, que apurou que muitas críticas ficam apenas nos bastidores pelo medo que especialistas têm de contrariarem a Fundação Gates que despejou mais de US$ 8 bi em universidades e financiou no mínimo 20 mil artigos acadêmicos. “Os estudiosos até usaram o termo ‘o calafrio de Bill’ para descrever sua relutância em morder a mão que os alimenta”.

Os críticos dizem que o IHME parece jogar por um conjunto diferente de regras do resto da comunidade científica. Fontes ouvidas pela matéria descrevem os métodos como “completamente opacos” o que o tornam impossíveis de serem verificados.

“Hoje, as extensas estimativas do IHME se tornaram o padrão ouro para a compreensão de uma gama cada vez mais ampla de tópicos relacionados à saúde e ao desenvolvimento – particularmente no mundo em desenvolvimento com poucos dados, onde a manutenção de registros é esparsa. Seu site oferece mapas interativos que permitem aos usuários pesquisar virtualmente qualquer aldeia na África Subsaariana, por exemplo, para descobrir quantos anos de educação as pessoas têm; como a malária, o HIV e as infecções respiratórias inferiores estão mudando com o tempo; quem tem acesso a água canalizada; ou quantos homens são circuncidados. Essas estimativas – suposições bem fundamentadas, na verdade – ajudam a orientar bilhões de dólares em gastos com ajuda e dizem aos ministros da saúde, instituições de caridade, pesquisadores e jornalistas onde as coisas estão melhorando ou piorando”.

Ao Nation, o instituto foi de um tom arrogante (“quem está alimentando essas críticas?”, foi a pergunta que o repórter ouviu do porta-voz) à condescendência: “Essa crítica não é nova. Parte do processo de criação de uma fonte líder de dados globais de saúde nos últimos 12 anos está enfrentando críticas. O IHME acolhe isso e outras críticas como um aspecto para melhorar o trabalho do instituto”.

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