Bolsonaro investe contra isolamento horas depois de Queiroga falar que “mudanças estão em curso”

Presidente anunciou que vai mover ação no Supremo contra governadores e enviar com urgência ao Congresso projeto para liberar todas as atividades

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Marcelo Queiroga deve assumir o comando do Ministério da Saúde hoje. Questionado pela imprensa sobre o que se alteraria na sua gestão, ele afirmou que mudanças já estão em curso: “Já está sendo feito. O diferente é seguir as recomendações da ciência. O presidente escolheu um médico para o ministério, um médico que é oriundo de uma sociedade científica, a Sociedade Brasileira de Cardiologia, que foi sempre quem protagonizou a medicina baseada em evidência”. Essa declaração foi dada na entrada do Palácio do Planalto na tarde de ontem, antes de uma reunião com Jair Bolsonaro

Poucas horas depois, durante a transmissão ao vivo que sempre faz às quintas-feiras, o presidente anunciou que o governo federal entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo contra governadores e prefeitos que estabeleceram medidas restritivas à circulação de pessoas, como reza a cartilha da ciência. 

De tarde, Queiroga também tinha dito aos jornalistas que Bolsonaro havia determinado que ele dialogasse com os gestores locais. De noite, o presidente chamou governadores e prefeitos de “projetos de ditadores”.

Bolsonaro foi além e voltou a comparar os toques de recolher instituídos por vários gestores ao estado de sítio – que é quando os direitos políticos da população e a liberdade de imprensa são suspensos. Sem citar quais, informou que a ADI do governo mira os decretos de três governadores. “Isso é estado de sítio, que só uma pessoa pode decretar: eu”, disse.

Marcelo Queiroga repetiu ontem que a vacinação não será suficiente para conter o tsunami de mortes atual e, de modo oblíquo, falou em “isolamento social inteligente”. Seu chefe, ao contrário, foi bem mais direto e objetivo. Bolsonaro informou que vai enviar ao Congresso um projeto de lei com indicação de tramitação em regime de urgência para definir quais atividades devem ser consideradas essenciais durante a pandemia. “É toda aquela que serve para o cidadão botar pão na mesa. Então, tudo passa a ser atividade essencial”, sentenciou.

Calma que não para por aí porque o presidente comparou o isolamento social a férias. “Vejo que a população está dividida: uns que querem o ‘fica em casa’ e outros que querem trabalhar por necessidade. Eu acho que ficar em casa é uma coisa bacana. Quem não quer ficar de férias em casa aí? Mas pouquíssimas pessoas têm poder aquisitivo para ficar sem trabalhar”.

A semana mais mortífera da crise sanitária brasileira fecha com novos dados do Datafolha que apontam erro no diagnóstico presidencial. O apoio popular às restrições impostas para conter as transmissões passou de 61% em dezembro para 71% agora. O fechamento de lojas, bares e restaurantes tem o apoio de 59% – mesmo percentual de quem concorda que templos religiosos não podem seguir funcionando neste momento. 

A pesquisa mostra uma adesão ainda maior à avaliação de que a pandemia está sem controle no Brasil: em janeiro 62% da população pensava assim, número que subiu para 79%. Apenas 2% acham que a crise está totalmente controlada. E 18% acham que está parcialmente controlada. O levantamento foi feito entre segunda e terça-feira, portanto já reflete a movimentação para trocar o comando do Ministério da Saúde.

Ao longo da semana, o Datafolha mostrou que 56% dos brasileiros consideram Bolsonaro incapaz de liderar o país e 54% avaliam como ruim ou péssima a atuação do presidente na semana em que foi apresentado o quarto ministro da saúde. Para o vice-presidente Hamilton Mourão, os números serão revertidos a favor do capitão reformado quando a vacinação avançar e as novas parcelas do auxílio emergencial chegarem ao bolso da população.

Estado de intimidação

Mas a verdade é que o governo federal dá cada vez mais mostras de que não tolera críticas e responderá com repressão autoritária a manifestações contrárias ao presidente Jair Bolsonaro. Ontem tivemos mais um exemplo.

No começo da tarde, cinco manifestantes foram detidos pela Polícia Militar com base na Lei de Segurança Nacional após estenderem uma faixa em frente ao Palácio do Planalto. Na faixa, estava estampada a charge do cartunista Renato Aroeira – que também foi enquadrado pela LSN a pedido do Ministério da Justiça pela autoria da imagem onde se vê Bolsonaro com rabo e chifres, transformando uma cruz vermelha, que simboliza a saúde, em uma suástica nazista. Chegando à Polícia Federal, o delegado Franco Perazzoni não concordou com a PM – ainda bem. Mas a serpente já está solta.

Bernardo Mello Franco resume o quadro: “A escalada autoritária é liderada pelo Planalto. O ministro da Justiça, André Mendonça, ressuscitou a Lei de Segurança Nacional para enquadrar os críticos do chefe. Já mandou a Polícia Federal instaurar inquéritos contra jornalistas, advogados e até cartunistas. Agora o exemplo do pastor inspira bolsonaristas nas polícias civis e militares. Num país governado por um fã do AI-5, há sempre um guarda da esquina disposto a rasgar a Constituição. O professor Conrado Hübner Mendes, da Faculdade de Direito da USP, considera que o Brasil já vive sob um ‘estado de intimidação’. ‘O objetivo das investidas policialescas é gerar um clima de medo e autocensura. É uma forma de repressão preventiva’, define.”

Como que servindo de ilustração da tese do jurista, eis a constatação de uma das 25 pessoas intimadas a depor para a Polícia Federal também com base na Lei de Segurança Nacional: “Às vezes não damos a devida gravidade ao que postamos na nossa rede social”. O caso aconteceu em Uberlândia (MG) após um morador publicar uma mensagem em que citava a visita do presidente à cidade e questionava se alguém gostaria de se tornar “herói nacional” na ocasião. Várias pessoas foram intimadas apenas por interagir com o post.

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