A ‘MP da impunidade’

TCU tem 26 investigações sobre medidas do governo federal, mas documento livra qualquer agente público de processos por erros cometidos na pandemia. Pode beneficiar Bolsonaro

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Um dia depois que o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou, por unanimidade, a abertura de uma auditoria no pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 devido a suspeitas de que 73 mil militares da ativa, da reserva e pensionistas tenham recebido ilegalmente o benefício, o presidente Jair Bolsonaro editou uma medida provisória que está dando o que falar. Trata-se da MP 966, que livra qualquer agente público de processos civis ou administrativos por erros cometidos durante a pandemia do novo coronavírus. 

A MP estabelece que esses agentes só poderão ser responsabilizados se ficar provado que agiram ou se omitiram “com dolo ou erro grosseiro“. E para caracterizar um ou outro, prevê que se levem em conta coisas como o “contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia e das suas consequências, inclusive as econômicas”.

Por tudo isso, a medida provisória já ganhou diversos apelidos: seria a “MP da impunidade” ou a “MP do excludente de ilicitude”, em referência à ‘licença para matar’ defendida por Bolsonaro para livrar policiais de processos. Em poucas horas, provocou diversas reações. 

A Associação Brasileira de Imprensa entrou com ação direta de inconstitucionalidade no Supremo. Já o Movimento Brasil Livre (MBL) ingressou com uma ação popular contra a MP na Justiça Federal de Brasília. Os líderes da Rede, do PSOL e do PSB na Câmara e no Senado protocolaram requerimentos em que pedem a devolução da medida provisória – algo que só pode ser feito pelo presidente do Congresso, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), que não se pronunciou sobre o assunto ontem.  

Existem duas críticas principais à MP. A primeira ataca o conteúdo. Diversos especialistas ouvidos pela imprensa (e também ministros do STF, mas reservadamente) argumentam que o texto é inconstitucional. Iria de encontro ao artigo 37 da Constituição, que fala sobre os direitos e deveres do agente público e prevê sanções a atos ilícitos, como o reembolso de recursos desviados e a perda do cargo. “Essa MP do Bolsonaro eleva de forma absurda as exigências para que essa responsabilização seja realizada”, disse o procurador do Estado de São Paulo, José Luiz Souza de Moraes, em entrevista ao Globo

“Essa MP blinda todo mundo”, resumiu, por sua vez, José Múcio, presidente do TCU, ao mesmo jornal. Além da investigação sobre o pagamento irregular de militares, o Tribunal abriu outras 26 ações de  acompanhamento das medidas adotadas pelo governo federal durante a crise. “É dinheiro público, não podemos fechar os olhos e ser parceiros do liberou geral. Quando tudo isso passar, vamos ter que fazer contas para saber quem salvou vidas e quem se aproveitou da emergência para melhorar a sua vida.  Não quero criar polêmicas, mas não podemos estimular a pandemia dos mal intencionados”, criticou Múcio.

Mas há também muita desconfiança de que a MP possa ter um beneficiário principal: o próprio presidente, que incentiva a livre circulação de vírus e pessoas, contrariando tudo o que se faz no resto do mundo. “Tirar a responsabilização dos agentes públicos em um momento no qual se precisa de ainda mais cuidado é uma forma de tentar isentar de dolo e responsabilidade os agentes que não preservarem a vida do povo, que é infelizmente o caso de Bolsonaro”, afirmou a, deputada federal Fernanda Melchiona (RS), que é líder do PSOL na Câmara. Já para a líder do Cidadania, senadora Eliziane Gama (MA), a MP encobre erros como o incentivo do uso da cloroquina feito pelo presidente na contramão das evidências científicas.

Fato é que Bolsonaro se fez de desentendido. Questionado sobre a MP pela manhã em frente ao Palácio do Alvorada, fingiu que não sabia de nada e respondeu que iria ver do que se tratava quando chegasse ao Planalto. De noite, durante transmissão em suas redes sociais, fez questão de confundir a MP 966 com outra medida provisória, a 930, editada em março. O texto é parecido e determina que ninguém do Banco Central será responsabilizado por atos praticados como resposta à crise da covid-19. Desse teatro participou o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães. 

De tarde, contudo, Bolsonaro participou de uma videoconferência organizada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) com empresários na qual a MP 966 foi defendida pelo ministro da Economia. “No Brasil, se você quiser soltar dinheiro para governador, você solta R$ 100 bilhões em dez minutos, todo mundo aprova. Mas se quiser soltar R$ 1 bilhão para uma empresa privada, exatamente em função do que já aconteceu lá atrás, que teve roubalheira, ninguém quer assinar. O próprio funcionário público não quer assinar. Então nós tivemos que lançar agora uma medida para blindar, a MP 966, porque o próprio funcionário do BNDES não queria assinar”, justificou Paulo Guedes – que também assina a medida provisória.

Como toda a MP, a 966 já está em vigor. O texto pode ser devolvido pelo Congresso. Caso contrário, tem prazo de 120 dias para ser votado pela Câmara e pelo Senado. Caso isso não aconteça, a medida provisória caduca e perde a validade. 

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