Sem concessões

Com um programa que toca em muitos vespeiros, Guilherme Boulos (PSOL) defende recursos públicos só para saúde pública

Crédito: Mídia Ninja

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26 de setembro de 2018

Por Raquel Torres, do Outra Saúde

As mais de 200 páginas são a primeira grande diferença entre o programa de governo de Guilherme Boulos (PSOL) e os dos demais candidatos, normalmente bem mais enxutos. Apesar de abordar um sem número de questões, com diagnósticos extensos e muitas propostas (às vezes vagas) para cada área, o candidato tem oscilado entre zero e 1% das intenções de voto nas pesquisas eleitorais.

Conhecido por sua atuação como coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, ele defende taxar mais os mais ricos, acabar com a “farra” das isenções fiscais nos planos de saúde, não se furta a falar do direito ao aborto seguro e legal… O discurso de enfrentamento já lhe rendeu críticas sobre, afinal, como alguém espera se eleger falando essas coisas. Em resposta a uma delas, em seu programa de vídeo Café Com Boulos, ele respondeu: “Não negocio princípios para ganhar eleição, não abro mão das minhas posições porque elas podem tirar votos ou melindrar tal setor. Precisamos elevar o nível do debate”.

Ponto importante

Desde a pré-campanha, a saúde tem merecido certo destaque nas falas do candidato. Isso se reflete no programa de governo, em que a palavra “saúde” é mencionada 119 vezes, ou, em média, uma vez a cada duas páginas.

Os princípios em relação a essa área não poderiam estar mais claros. A chapa defende o SUS como sistema público, universal e gratuito, de responsabilidade de um Estado forte, com gestão direta. “A saúde deve ser tratada como um direito e não como privilégio de quem pode pagar”, afirma Boulos.

Em vários espaços diferentes, ele tem defendido que o modelo do SUS é adequado, mas o ‘x’’ da questão é o financiamento: o Brasil gasta apenas 3,9% do PIB em saúde, sendo que a União só é responsável por 1,7%. Em outros países com sistemas universais como o nosso, aponta ele, esse gasto é de em média 8%, ou seja, cerca de duas vezes maior.

A maior solução proposta pela chapa do PSOL é, portanto, elevar o financiamento, especialmente por parte da União, que passaria a participar com o equivalente a 3% do PIB.

Para isso, Boulos aponta a necessidade de revogar a Emenda Constitucional 95, que congela gastos federais com áreas sociais até 2016. A ideia da revogação é compartilhada por candidatos como Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT). “Sem isso, não se governa para as maiorias”, diz. Ele defende um plebiscito para definir a questão.

O problema é que, embora a revogação permita que se volte a um patamar anterior do financiamento em saúde, este já era e segue sendo insuficiente. Portanto, Boulos quer também aumentar o percentual da Receita Corrente Líquida que a União deve investir em saúde.

Vários vespeiros

Ao contrário de outros presidenciáveis, como Henrique Meirelles (MDB) e João  Amoêdo (Novo), Boulos não só aponta que é necessário ter mais dinheiro para a saúde como também garante que é possível.

Neste vídeo, ele diz que se deve “mexer onde efetivamente tem gasto inútil ou falta de arrecadação”. E exemplifica: “Só este ano o Brasil vai deixar de arrecadar, em isenções fiscais para empresas o chamado Bolsa Empresário , R$ 283 bilhões”. De acordo com o candidato, isso representa 4% do nosso PIB, enquanto a média mundial de desonerações fiscais fica em torno de 2%. “Se cortássemos esse valor pela metade, fazendo o país se aproximar da média mundial, isso poderia significar dobrar os investimentos para o SUS”, calcula.

O presidenciável propõe também uma grande reforma tributária, com criação de imposto sobre fortunas e aumento da taxação sobre grandes heranças. O aumento da arrecadação sobre herança e sobre doações inter vivos seria de 1,7% para 1,9% do PIB, tributando as grandes fortunas na herança com alíquotas progressivas que iriam de 2% a 40%.

Além disso, seria feita uma reforma tributária progressiva, “cobrando mais de quem não paga e tem condições de pagar”. De acordo com Boulos, a tributação de lucros e dividendos poderia gerar uma arrecadação de R$ 60 bilhões por ano. Enquanto isso, haveria uma redução gradual dos impostos e taxas sobre consumo e produção, e redução também dos tributos que incidem sobre bens e serviços, como a cesta básica.

Há pouco tempo, o economista ‘guru’ de Jair Bolsonaro (PSL), Paulo Guedes, defendeu uma alíquota única para Imposto de Renda, de 20%. Depois voltou um pouco atrás e disse que na verdade só queria estabelecer um teto de 20%. Isso beneficiaria a pessoas que têm maiores rendas tributáveis, que, em vez dos atuais 27,5% que pagam de imposto, pagariam só 20%. A proposta foi criticada.  “Em terras liberais como o Reino Unido, os impostos são progressivos até 50%, o que permite ao Estado oferecer serviços públicos aos mais pobres”, escreveu Vladimir Safatle, em coluna da Folha.

Pois uma das propostas de Bolsos é aumentar a faixa de isenção do Imposto de Renda e, ao mesmo tempo, criar uma nova alíquota, não de 50%, mas de 35%, para rendimentos acima de R$ 325 mil por ano ou R$ 27 mil por mês. De acordo com ele, a tributação de patrimônio e a nova alíquota do IR gerariam uma arrecadação extra de 2% do PIB.

Há outras propostas mais específicas em relação ao financiamento da saúde. Uma delas é o fim da Desvinculação de Recursos da União (DRU), um dispositivo que existe desde os anos 1990 e permite ao governo federal gastar parte dos recursos que da saúde com outras coisas, como o pagamento de dívidas.

Boulos também quer reverter a renúncia tributária com planos de saúde e rever os subsídios e desonerações fiscais envolvidos com a assistência. “O Estado deixa de arrecadar hoje um terço do orçamento do SUS em renúncias fiscais para planos de saúde. Vamos acabar com a ‘farra’ das operadoras de planos”, promete. Outra bandeira é acabar com a isenção para hospitais filantrópicos para hospitais que não atendam 100% ao SUS: “Para ter renúncia, isenção, tem que ser 100% SUS. Dinheiro público tem que ir para saúde pública”.  

O candidato também acredita que falta regulação na saúde privada. Ele afirma que a Agência Nacional de Saúde (ANS), responsável por isso, está controlada por representantes dos próprios planos, o que é inadmissível. “Enquanto a ANS for capturada pelos planos e mercados, os boletos vão chegar mais caros. Ou as raposas vão continuar cuidando do galinheiro, ou vamos enfrentar essa máfia”, disse, em vídeo. Em seu programa, ele promete subordinar a ANS e suas atividades regulatórias ao Ministério da Saúde. E defende auditar e cobrar as dívidas que os planos têm com o sistema público.

A gestão

O programa se opõe frontalmente à atuação das organizações sociais na gestão de unidades de saúde e propõe revogar a lei que as instituiu. “Defendemos saúde pública com gestão direta, não achamos que organizações sociais são o caminho. Consideramos que OS é privatização e, quando põe um intermediário lucrando, o dinheiro que deveria chegar na ponta não chega”, diz o candidato.

Ele não se detém, porém, nos problemas encontrados atualmente na gestão direta. Para Boulos, a questão é que a Lei de Responsabilidade Fiscal impede que estados e municípios aumentem seus gastos com pessoal, o que os leva à necessidade de terceirizar a contratação por meio das OS. “Temos que rever a Lei de Responsabilidade Fiscal. Virou tabu dizer isso, mas ela hoje é socialmente irresponsável, força à privatização dos serviços”. Essa revisão também viria por meio de plebiscito.

Com o dinheiro…

Com mais recursos, afirma Boulos, seria possível estender a cobertura da atenção básica para 100% da população, ampliar o número de leitos hospitalares e melhorar o acesso a medicamentos.

Há grande ênfase na prevenção, e o programa critica explicitamente a reformulação da Política Nacional de Atenção Básica, que aconteceu no ano passado de forma bastante controversa. Segundo o documento, a nova PNAB “colocou em xeque a integralidade, o trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde e importantes avanços da Estratégia Saúde da Família”.

Para o candidato, é preciso falar de “saúde comunitária, de Programa Saúde da Família, de agentes comunitários de saúde, que vão acolher as pessoas, fazer uma primeira triagem, dialogar lá na ponta, onde está o problema”. A Saúde da Família precisa ser vista como “essencial”: “Não é secundário. Ali se diagnosticam problemas reais, indo até as pessoas. As pessoas só vão ao hospital quando os problemas se acumulam”.

Tanto no programa como nas falas do candidato, a saúde aparece fortemente imbricada em questões sociais diversas. Quando perguntado pela Folha sobre qual seria o maior problema de saúde do Brasil, ele respondeu que era a desigualdade – a solução passaria pela “ampliação do direito à saúde pública e gratuita, priorizando grupos e regiões mais carentes e de forma articulada com outras políticas públicas”. Em seu plano, ele lembra que o acesso ao esgoto não é realidade para metade da população brasileira, que a mortalidade infantil no Norte e no Nordeste chega a ser três vezes a média nacional, fala de acesso à moradia e cita danos do agronegócio e do uso de agrotóxicos (Boulos já disse ser “absolutamente contra o PL do Veneno”).

Há propostas sobre saúde destinadas a populações específicas, como a efetivação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e da Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher, ambas já existentes. Também há as promessas de assegurar tratamento profissional adequado e respeitoso às mulheres lésbicas, bissexuais e às mulheres e homens transexuais e de “criar plano de políticas públicas e metas para redução da transmissão do vírus do HIV, recuperando e reforçando campanhas e políticas específicas para a população LGBTI, negra, campesina e indígena, e da mortalidade por Aids e coinfecções como tuberculose e pneumonia”.

Algo caro ao plano de governo de Boulos é o controle social. Em quase todo debate televisivo ele repete que a participação da população não pode se restringir a apertar um botão nas eleições. O documento de suas propostas afirma que os conselhos devem ser “instrumentos de politização e do engajamento coletivo, com função de gestão/decisão orçamentária e fiscalização no nível territorial (postos de saúde, escolas, creches)”.

Em relação aos profissionais do SUS, a proposta é a criação da “Carreira Única Interfederativa do SUS”. Não fica bem explicado como ela funcionaria, mas o plano diz que ela melhoraria a remuneração e a distribuição dos profissionais, garantiria estabilidade por meio do vínculo público, permitiria progressão e mobilidade entre funções e níveis do sistema e promoveria educação e qualificação permanentes.

Em uma análise dos planos de governo dos candidatos presidenciáveis, pesquisadores da Abrasco chamaram a atenção para pelo menos dois problemas do programa de Boulos. Um é que as filas de espera para consultas e cirurgias – uma das maiores queixas de quem usa o SUS no dia a dia – até aparecem no documento, que menciona a necessidade de estabelecer um teto de espera, se necessário, usando a rede privada. No entanto, não há grandes detalhes  e não se estabelece, por exemplo, qual deveria ser esse teto. O segundo é que, apesar de ter grande preocupação com o acesso à saúde, o plano não fala de forma específica sobre como melhorar efetivamente a qualidade dos serviços.

Tabus

A posição de Boulos sobre as drogas é por demais conhecida e o programa defende regulamentar “a produção, o comércio da maconha e o consumo de drogas ilícitas para reduzir danos e violência sistêmica”.

Ao contrário de outros candidatos, ele também define em seu plano de governo a defesa do direito ao aborto legal e seguro. Isso só aparece explícito no programa de um único presidenciável além dele, João Goulart Filho (PPL).  Em vídeo, Boulos diz que sabe que é preciso enfrentar os tabus. “Sabemos que a questão [do aborto] mexe com crenças  religiosas que precisam ser respeitadas, mas ninguém é a favor do aborto, ninguém defende o aborto. Defendemos o direito das mulheres de fazerem aborto, de decidirem sobre seus corpos, o que é algo totalmente diferente. Esse é um tema de saúde pública. Hoje, independentemente da opinião de cada um de nós, muitas mulheres abortam. Oito milhões já fizeram aborto no Brasil. E morrem em média quatro mulheres por dia em decorrência de abortos inseguros. Quando o tema é um tabu, morre gente”.

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