Como uma prisão

Maus tratos e direitos desrespeitados em instituições para pessoas com deficiência

Crédito: Human Rights Watch

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Por Bruna de Lara, no Intercept

23 de maio de 2018

Carolina não tem mais controle sobre sua vida. Sobrevivente de uma agressão grave, cometida por um familiar, ela desenvolveu uma deficiência física. Há uma década, o problema de saúde foi considerado justificativa plausível para uma interdição. Declarando-a como incapaz, um juiz retirou dela o direito de tomar decisões sobre sua vida financeira e pessoal. Desde então, Carolina, hoje com 50 anos, vive em uma instituição para pessoas com deficiência nos arredores de Brasília – onde foi confinada pelos filhos, seus responsáveis legais, contra sua vontade.

Em todo o Brasil, mais de 5 mil adultos com deficiência física ou mental estão morando nesse tipo de instituição, segundo o censo mais recente do Sistema Único de Assistência Social. Entre novembro de 2016 e março deste ano, a organização internacional Human Rights Watch visitou 19 instituições de acolhimento, e descobriu – além dos inúmeros casos de abusos, maus tratos e condições degradantes – que quase todos os seus residentes foram legalmente privados do direito de decidir sobre a própria vida. A maioria foi internada sem seu consentimento.

Eles dependem dos seus responsáveis legais – em geral, um familiar ou o diretor da instituição – para tomar qualquer decisão: o que comem, com quem se relacionam, quando dormem, o que vestem, como gastam o dinheiro ou como passarão o dia. Em uma instituição do Distrito Federal, todas as mulheres tomam anticoncepcionais sem sua permissão. Em outras, é comum que os residentes tomem remédios e sedativos dados por funcionários, sem necessidade médica, para controlar seu comportamento.

As instituições não passam de hospícios modernos. Funcionam como asilos para idosos, mas voltados para deficientes físicos e mentais. O problema é que muitos deles, sejam instituições privadas dedicadas a esse fim ou alas de hospitais, operam como depósitos de pessoas.

Como Frederico**, homem de 70 anos internado desde os 5 em uma instituição de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, a maior parte dos residentes vive em instituições desde a infância. São décadas passadas em cima de camas dispostas uma ao lado da outra, sem qualquer atividade de lazer. Em certos casos, não se levanta sequer para usar o banheiro. Com poucos funcionários, algumas instituições evitam o trabalho colocando fraldas nas pessoas, e instruindo a equipe a trocá-las na cama. Às vezes, os quartos têm portas e janelas gradeados, ou grandes portões de ferro.

“Este lugar é muito ruim, é como uma prisão”, disse Carolina à ONG. Ela foi internada à força no mesmo ano que o Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Segundo o tratado, os adultos com deficiência institucionalizados contra sua vontade são vítimas de privação ilegal de liberdade. “O número de pessoas nessa situação no Brasil é chocante até para nós, que estudamos o tema ao redor do mundo”, criticou Carlos Ríos Espinosa, autor do relatório lançado pela Human Rights Watch nesta quarta-feira.

Segundo o documento, é preciso que o Brasil invista em um processo de “desinstitucionalização” e na criação de “mecanismos de tomada de decisão apoiada”, para garantir a autodeterminação das pessoas com deficiência. Esse apoio envolve a adaptação da comunicação, para que a pessoa possa compreender o que está em jogo e escolha quem possa ajudá-lo com a decisão. Quando nem assim for possível determinar a vontade da pessoa, a decisão deverá ser tomada com base na interpretação mais próxima de suas preferências, e não no que outros julgam ser em seu “melhor interesse”.

Em 2015, foi sancionado o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que tornava ilegal a internação sem consentimento, por permitir a privação de capacidade legal apenas em atos de natureza patrimonial e de negócios. Essa determinação, porém, foi revogada pelo novo Código de Processo Civil, adotado naquele ano. Agora, tramita no Senado um projeto de leique pretende conciliar as duas leis.

*Nome fictício usado no relatório da Human Rights Watch.

**Nome atribuído pela reportagem a um homem citado anonimamente no relatório.

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