Games: Exploração discreta, porém intensa

Há bem mais que diversão no Twitch, a rede social remunerada para gamers. Plataforma induz participantes a lutarem entre si, num jogo em que poucos ganham, o lucro da corporação é certo e a responsabilidade, zero. Mas já brota a resistência

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Por Jackeline Gameleira da Silva 1

> Este artigo integra as discussões sobre o espraiamento do processo de digitalização da economia, sobretudo no que se refere às empresas-plataforma de trabalho, no Brasil. São publicadas semanalmente em Outras Palavras e fazem parte de duas edições da Revista da Faculdade do Dieese de Ciências do Trabalho. A publicação é fruto de parceria com a Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) e a Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET). Leia outros textos desta série sobre as várias faces da precarização do trabalho.
> Título original: Criação de conteúdo em plataformas digitais: os.as streamers da Twitch2

As plataformas digitais possibilitam a exploração econômica de diversas formas de trabalho. Algumas dessas atividades são menos visíveis, tal como o trabalho de produção de conteúdo online em redes sociais, realizado no Facebook, Youtube e na Twitch. Esta última é uma plataforma menos conhecida do público em geral, mas de grande alcance. O crescimento gradativo da Twitch, que conta atualmente com o total de 8.431.539 criadores.as de conteúdo ativos.as no mundo,3 e as diversas questões relativas às condições laborais que nela se explicitam, despertam a atenção a respeito desta plataforma digital, considerando sua forma de governança e a atividade que nela é realizada.

A Twitch consiste em uma plataforma de streaming em que os.as criadores de conteúdo, denominados.as de streamers, transmitem vídeos ao vivo e online geralmentejogando jogos de computador, celular ou videogame ao mesmo tempo em que transmitem sua própria imagem.

A novidade do formato de conteúdo criado na Twitch, em comparação com os vídeos gravados previamente do Youtube, é a possibilidade de o.a streamer interagir em tempo real, durante a transmissão, com a audiência presente no bate-papo virtual. Isto é utilizado como um atrativo e um diferencial da plataforma em seu site oficial.

Esse recurso acaba se tornando uma obrigação para o.a criador.a de conteúdo da plataforma da Twitch, e requer que o.a streamer, além de produzir o conteúdo, esteja todo o tempo interagindo e também incentive a interação no bate papo virtual com a finalidade de criar uma comunidade. A realização dessas e outras ações surgem a partir do desenho e da interface da plataforma digital, que direciona o que deve ser feito para que a pessoa/trabalhador.a alcance o sonho de ser um.a streamer de sucesso. A estratégia da plataforma é incentivar um sonho que faz parte do imaginário de muitos.as streamers que desejam/precisam sobreviver financeiramente a partir desta atividade. O sistema da plataforma, no entanto, permite que apenas um pequeno número de streamers de sucesso ocupe o topo da pirâmide e realize o sonho de atingir grandes ganhos financeiros. A maioria permanece com pouco ou quase nenhum ganho financeiro, mas mantém o sistema em funcionamento.

A interface que o.a streamer acessa estabelece diversas metas a serem cumpridas, como se estivesse em um jogo. Com o avanço das fases, algumas ferramentas vão sendo liberadas para permitir gerenciar o seu canal de forma mais efetiva. A fase inicial é a de streamer básico.a, onde se encontra quem acabou de criar um canal na plataforma e ainda não pode monetizar as transmissões. A segunda fase é a de streamer afiliado.a, em que é possível monetizar as transmissões e, a terceira fase, é a de streamer parceiro.a, que é a fase mais alta e com mais ferramentas. Existem também muitas outras metas a serem cumpridas pelo.a streamer com a finalidade de direcionar a atividade de acordo com os objetivos estabelecidos pela plataforma digital. A gestão realizada, então, está diretamente relacionada à gamificação, que adota características lúdicas do jogo, como as metas e as fases, para a realização da atividade.

Além disso, esses instrumentos de controle, quase imperceptíveis por parte de seus.as usuários.as, são os responsáveis por padronizar, em certa medida, a produção do conteúdo da plataforma4, apesar de existir uma margem para a criatividade dos.as streamers. Isto é importante para a plataforma manter “um padrão de qualidade”, o que faz os.as streamers seguirem, a partir dos comandos sutis da plataforma, um padrão de produção de conteúdo e de interação.

A Twitch tem como um de seus objetivos manter a atenção dos.as telespectadores.as na plataforma para dar continuidade à produção de dados a partir das interações que nela se realizam5. Neste sentido, o.a streamer não só produz vídeos como também informações a partir da sua atividade, além de estimular que os.as usuários.as produzam informações. Portanto, tanto os.as streamers como os.as telespectadores.as realizam atividades que possuem alto valor e que são responsáveis pelo contínuo aprimoramento da plataforma, de seus mecanismos de controle e de seu retorno financeiro, mas que aparecem escondidas no discurso de que se tratam apenas de entretenimento e de comunicação6.

As lives podem durar horas, o que significa que os.as streamers têm que ficar sentados.as em frente ao computador durante um grande período. Não há garantia de que possuam um meio ambiente adequado para realizar sua atividade, nem que possuam períodos de pausas para descanso. Sair da frente do computador e pausar a live tem por consequência dispersar toda a audiência que foi reunida com muito esforço. Como a plataforma não supervisiona as condições de trabalho, isto significa, na prática, que os.as streamers realizam a atividade sem garantias de condições mínimas de saúde e segurança.

O pagamento dos.as streamers afiliados.as (segunda fase) e parceiros.as (terceira fase) é realizado pela Twitch a partir de porcentagens, por exemplo, sobre anúncios durante as transmissões. Além disso, há o valor mínimo de 100 dólares para saque da remuneração. Esta determinação unilateral da Twitch faz com que parte dos.as streamers passem meses esperando para sacar o dinheiro, sem qualquer autonomia quanto à determinação do valor do seu próprio trabalho.

Além disso, a Twitch elabora os algoritmos, ou seja, a programação e a interface da plataforma, com o objetivo de controlar o trabalho a ser realizado pelos.as streamers, de modo que as ações são direcionadas de forma sutil. A plataforma também obtém retorno econômico a partir da exploração dessa atividade, mas não fornece garantias mínimas de saúde e de segurança para que a atividade seja executada.

Entretanto, apesar de existirem muitas questões envolvendo o trabalho que é realizado pelos.as streamers, a Twitch não reconhece que haja uma relação de trabalho e não assume qualquer responsabilidade a respeito. A plataforma busca se eximir de qualquer risco do seu próprio negócio, apesar da exploração econômica que realiza. Trata-se de uma estratégia típica do novo modelo de negócios adotada pelas plataformas digitais, baseada na ideia de externalização dos riscos e custos da atividade econômica para uma multidão de trabalhadores.as7.

Ou seja, não se trata de uma relação entre iguais e que deve ser regulada pela legislação civil, mas de uma relação entre indivíduos isolados e uma grande empresa-plataforma que, portanto, deve ser protegida e regulada pela legislação trabalhista.

É importante destacar que aos.as streamers se organizaram coletivamente no movimento inicialmente denominado de Sindicato dos Streamers e que, posteriormente, foi alterado para União dos Streamers, e no Apagão da Twitch8. Tais ações demonstram que a organização coletiva continua sendo um caminho para a busca de melhoria das condições laborais, mesmo quando o trabalho se realiza a partir das plataformas digitais. Afinal, a legislação não exige a formalização do vínculo de emprego para que sindicatos sejam criados, podendo existir, por exemplo, sindicatos de trabalhadores.as autônomos.as (art.511, CLT).

Esta análise demonstra a importância de estudos sobre as diversas questões relativas a esse novo tipo de trabalho de criação de conteúdo. Além da plataforma da Twitch, é necessário englobar nas análises também as plataformas como Instagram, Facebook, Twitter e Youtube, cada qual com suas peculiaridades e semelhanças. Grande parte das pessoas que criam conteúdo online sonham em obter sucesso um dia, mas são, na maioria das vezes, exploradas pelas plataformas digitais de forma sutil. O trabalho de criação de conteúdo, portanto, exige um olhar mais cauteloso de modo a propiciar um debate e a criação de mecanismos jurídicos que responsabilizem as plataformas pelas relações de trabalho, assegurando a saúde e a segurança das pessoas que o realizam.

1 Este texto é fruto de pesquisa de mestrado que desenvolvo no PPGD/UFRJ, sob orientação do professor Dr. Rodrigo de Lacerda Carelli.

2 Este artigo integra as discussões semanais a respeito do processo de digitalização da economia e do espraiamento setorial das empresas-plataforma no Brasil, sobretudo as de trabalho, que farão parte da edição da Revista da Faculdade do Dieese de Ciências do Trabalho de abril de 2022. As publicações também são fruto de parceria com a Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) e a Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET).

3 2 AISH, Gregor; GIRATIKANON, Tom. Charting the Rise of Twitch. The New York Times, 27 ago 2021. Disponível em: < https://www.nytimes.com/interactive/2014/08/26/technology/charting-the-rise-of-twitch.html>. Acesso em 22 nov. 2021. HSU, Tiffany. Twitch Users Watch Billions of Hours of Video, but the Site Wants to Go Beyond Fortnite. New York Times, 26 set. 2021. Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/09/26/business/media/twitch-twitchcon-ads-redesign.html. Acesso em 22 nov. 2021. TWITCHTRACKER Active Streamers By Month. Disponível em:<https://twitchtracker.com/statistics/viewers>. Acesso em 31 mar. 2022.

4 EKBIA, Hamid Reza; NARDI, Bonnie A. Heteromation, and other stories of computing and capitalism. Cambridge, MA: MIT Press, 2017, p. 37; CASILLI, Antonio. Da classe virtual aos trabalhadores do clique: a transformação do trabalho em serviço na era das plataformas digitais. MATRIZes, v. 14, n. 1, p. 13-21, 2020., p. 17

5 BUENO, Claudio Celis. The attention economy: labour, time and power in cognitive capitalism. Rowman & Littlefield, 2016.

6 DOORN, Niels van; BADGER, Adam. Platform Capitalism’s Hidden Abode: Producing Data Assets in the Gig Economy. Antipode, Vol. 0, 2020, doi: 10.1111/anti.12641; SRNICEK, Nick. Platform capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017 p. 28, 29.

7 CARDON, Dominique; CASILLI, Antonio. Qu’est-ce que le digital labor?. Ina, 2015, p.14, 33. OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio; CARELLI, Rodrigo de Lacerda; GRILLO, Sayonara. Conceito e crítica das plataformas digitais de trabalho. Revista Direito e Práxis, v. 11, p. 2609-2634, 2020.

8 Também podemos observar a organização dos trabalhadores em outra plataforma de produção de conteúdo online em rede social. Na Europa, temos o sindicato dos.as youtubers, que, inclusive, realizaram uma parceria com o IG Metall, que é um dos maiores sindicatos industriais da Europa. (https://www.theverge.com/2019/8/26/20833315/youtube-union-youtubers-negotiate-germany-meeting; https://canaltech.com.br/redes-sociais/youtubers-se-juntam-a-grupo-sindical-para-exigir-maior-igualdade-na-plataforma-145219/)

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