Cultura Alimentar: uma resistência ecossocial 

Os alimentos que chegam às mesas sintetizam uma sociedade. O sistema tritura a natureza e, junto com ela, os seres humanos através da fome e do colapso ambiental. Diante disso, o comer também é questão de direitos democráticos

Foto: Agência Senado
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Estou motivado a voltar à cultura alimentar, um tema recorrente em minhas análises de ativista por direitos ecossociais.[1] Não escondo a emoção que senti com o desfecho do caso das quatro crianças indígenas colombianas encontradas com vida, 40 dias após a queda do pequeno avião em que viajam no interior da imensa Floresta Amazônica. O acidente levou à morte da mãe, do piloto e de um agente indigenista. A façanha da sobrevivência em tal adversidade foi das próprias crianças sob o cuidado da irmã mais velha, de apenas 13 anos, que garantiu a sua própria vida e das menores de 9, 4 e 1 ano apenas. Como foi possível? Não foi milagre! Foi saber tradicional, transmitido de geração em geração, de convívio com o território, com tudo o que ele contem,  tirando daí a própria vida e sabendo como se virar diante de ameaças. Potência da cultura indígena, de um saber viver nos territórios, mesmo nas maiores adversidades, aprendendo a se proteger, a se orientar e se mover, demarcando pistas, buscando a água e o alimento necessários e resistindo.

Enquanto isto, aqui no Brasil  voltamos a ameaçar os remanescentes de Povos Indígenas com o  projeto – velho de mais de 5 séculos – de conquista, destruição de seus territórios e morte à seus modos de vida em sintonia com a natureza. A Constituição do Brasil de 1988 reconhece o direito dos povos às suas terras. Já deveriam estar todas demarcadas. Mas, a sina colonizadora, que ainda move a expansão avassaladora do extrativismo mineral, hidrelétrico, madeireiro e do agronegócio sobre territórios, nada respeita. E tem a maior bancada no Congresso Nacional para impedir a efetivação da demarcação das áreas de Povos Originários. Votaram às pressas o  tal “marco temporal”, legitimando a conquista e devastação dos seus territórios originários anterior à data da Constituição atual, outubro de 1988. É um absurdo não reconhecer que os Povos Originários são os legítimos ocupantes do imenso território, bem antes de qualquer conquistador e colonizador. Por sinal, são de antes de abril de 1.500

Esperamos que o STF defina a inconstitucionalidade do marco temporal. De toda forma, já perdemos muito do que os Povos Indígenas desenvolveram como saber sobre biodiversidade, animais e plantas, alimentos e medicinas, pois extinguimos muitos deles. Agora temos a única possibilidade, como sociedade brasileira, de garantir o reconhecimento dos direitos fundamentais dos povos indígenas e, com isto, garantir os seu modo de vida sustentáveis e os próprios biomas que ocupam, baseados no cuidado e na convivência, com respeito à natureza. Esta é a única possibilidade de continuar e nos inspirar para um novo modo de gerir o bem comum que nos dá a vida. Se o marco temporal prevalecer, O Brasil vai continuar a devastação e perder o muito que os Povos Indígenas tem a nos ensinar para voltar a nos conectar e conviver com os ritmos, os segredos e as maravilhosas potencialidades dos territórios. E, assim, evitar a catástrofe de uma crise climática sem controle para nós, a região e o planeta inteiro.

Motivado por estes fatos reais, voltei a pensar especificamente no elo entre alimento, natureza e sociedade, como condição incontornável do viver. O nosso modo de vida dominante, marcado por um capitalismo levado ao extremo, onde o que conta é transformar a própria natureza em mercadoria para acumular riquezas, é de rupturas radicais entre natureza e sociedade humana, apesar de não podermos viver sem o que natureza nos dá. Aliás, somos constituídos  dela e dependemos umbilicalmente dela. A vida humana, como todas as vidas, é parte da natureza, por mais que queiramos ter o pleno domínio sobre ela. Aliás, o esforço de dominá-la está nos levando a  extremas  rupturas com ela, ameaçando a integridade de seus sistemas ecológico e já provocando a crise climática, com consequências inimagináveis para a vida, humana e não humana. Mas nos faltam narrativas inspiradoras para refazer conexões e encontrar sentidos do cuidado, do conviver e do compartilhar, sem destruir e nem ameaçar os guardiões das matas, águas e campos, os Povos Indígenas.

O incrível é que o alimento, de algum  modo, sintetiza tudo isto como elo entre nós e a natureza, tanto de resiliência e resistência, como de dominação e destruição social e ecológica. Por isto, precisamos dar maior radicalidade à avaliação e ao debate da cultura alimentar em nossas buscas de caminhos de transformação democrática ecossocial.  A cultura alimentar dos povos carrega saberes e potencialidades de resiliência e transformação maiores do que normalmente considerados. A chaga da fome e a própria crise climática podem ser diagnosticas a partir de como o alimento é produzido na sociedade e chega ou não chega até as mesas de todas e todos. Os alimentos sintetizam muito do que são direitos democráticos ecossociais negados para excluídos e famintos por este sistema que tritura a natureza e, junto, tritura seres humanos. Não há como combater a fome e a miséria em nome de cuidar de gente, se, ao mesmo tempo, não estivermos cuidando da natureza, seiva de todas as formas de vida.

Ao longo das postagens no blog venho insistindo em duas questões fundamentais imediatas para, ao menos, dar a chance para que as novas gerações no mundo tenham a possibilidade de evitar a catástrofe ecológica e social que terão que enfrentar para poder sonhar e curtir a vida que lhes cabe viver no planeta. Isto como direito fundamental. Para tanto, cabe a nós evitar o pior desde aqui e agora. Isto implica em enfrentar radicalmente a lógica de desenvolvimento para a acumulação capitalista acima de tudo com uma perspectiva que integra virtuosamente o social e o ecológico. Tal desafio só será possível com transformações ecossociais ao mesmo tempo. Não há modelo a seguir, mas existem inspirações sobre como reestabelecer o que não pode ser rompido: a relação entre os processos e criações sociais, humanas, com o fluxo natural da vida, em simbiose, pois não há outra maneira de viver. Assim, o cuidado entre nós mesmos – fundamental na vida humana e todas as formas de vida – deve implicar no cuidado com as condições naturais que impregnam a vida. Tudo isto se exprime em cultura, em sua total radicalidade e abrangência, que implica em convivência, compartilhamento, troca respeitosa, potencialidades e limites combinados entre todas e todos, seres vivos humanos e não humanos, e a integridade dos sistemas naturais.

A segunda questão que considero fundamental, gestada ao longo da história humana, é o transformar conscientemente contradições e desencontros entre nós humanos  em potências de busca do melhor para todas e todos, inclusive a natureza.Trata-se de um modo de fazer radicalmente democrático, de disputas e tensões, nas circunstâncias dadas. De forma muito sintética, defino isto como concepção e prática de uma perspectiva democrática ecossocial transformadora: de busca de direitos ecossociais iguais para todas e todos em simbiose com o respeito radical dos direitos da natureza, a Mãe Terra.

São apenas visões estratégicas, mas dão uma direção para orientar o caminho. Mas o caminho precisa ser feito e, no fazer, precisa ser ajustado. Não há modelo a seguir e, sim, um sonho a buscar, atualizando-o sempre. É de processos sociais, culturais, políticos e econômicos que se trata, como criação humana nas circunstâncias históricas dadas, a cada momento.

Isto tudo me leva a insistir na cultura democrática a ser construída disputando. Concebo isto como um constante fazer estratégico de pensamento e ação, que se exprime na busca de hegemonia democrática a partir do coração e do chão da sociedade, um imenso ateliê de buscas e de fazeres coletivos. Nesta base, é possível definir o que demandar do Estado, que políticas e que regulações para o seu próprio agir e para ter força política de submeter e regular a economia para o bem comum coletivo. A cultura alimentar, pela conexão entre vida humana e natureza, é central. Como negócio, o alimento nos está levando ao desastre. Resgatemos a cultura alimentar em sua vibrante diversidade de sabores, cheiros, sentidos, significados, celebrações! Isto é buscar democracia ecossocial transformadora.   

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