Povos amazônicos, essenciais para saúde da floresta

Artigo de pesquisadores do Inpe detalha como a expansão do agronegócio na região, a partir da década de 1960, causa desequilíbrios que geram problemas de saúde pública. Solução será impossível se não incluir comunidades tradicionais

Foto: Daniel Tregidgo
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A matéria abaixo trata sobre artigo publicado na edição de março da revista Cadernos de Saúde Pública, que inaugurou este mês um espaço temático dedicado à Amazônia.
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A Amazônia é crucial na manutenção da vida no planeta: além de ser responsável pela produção de 20% do oxigênio de todo planeta, a floresta guarda uma diversidade de espécies e saberes de valor inestimável. Um artigo assinado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), publicado nos Cadernos de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), relaciona a diversidade amazônica e sua preservação a ação produtiva das comunidades locais. 

A riqueza sociocultural da região está ligada à coexistência de populações ribeirinhas, indígenas, quilombolas e extrativistas. Pesquisas recentes têm demonstrado, inclusive, como a presença humana na região influenciou no desenvolvimento do bioma como o conhecemos hoje: as dominâncias de espécies como o açaí, cacau e castanha do Pará indicam que a floresta foi ocupada e transformada há 8 mil anos – ou seja, muito antes da colonização. Hoje, os locais habitados pelas comunidades da região ainda são aqueles com mais produção e que guardam mais conhecimento sobre a biodiversidade da floresta. 

As práticas “agroextrativistas” ou “agroflorestais ancestrais”, como são identificadas aquelas praticadas por essas comunidades e que não operam em escala industrial, interagem com o bioma de forma positiva. “Essas populações e seus respectivos padrões tecnoprodutivos de intervenção sobre a natureza se relacionam de maneiras distintas com o bioma, produzindo paisagens diferenciadas e diversificadas”, afirmam os pesquisadores. Além disso, a interação com a floresta dá a essas populações conhecimentos privilegiados sobre técnicas e saberes envolvendo a fauna e a flora locais. 

Até o século 20, segundo os dados coletados pelo Inpe, as transformações históricas não provocaram grandes alterações na paisagem e na diversidade ecológica da Amazônia. O principal momento de mudança foi a década de 1960, com as políticas de ocupação dos governos militares através da expansão da fronteira agrícola – baseada no desmatamento para a introdução de monoculturas. A construção de novas estradas aumentou os fluxos migratórios em direção a Amazônia, o que levou à fragmentação do território e à introdução de mais tecnologias para a exploração da floresta. 

Esse processo teve seu auge em 1995, ano que registrou a maior taxa de desmatamento da história para a região. Foram 29.059 Km quadrados perdidos em prol da economia de “comoditização”, como destacam os pesquisadores. A produção de grãos avançou do cerrado para a floresta, levando à diminuição da biodiversidade e à alteração na qualidade da água e do solo – fato diretamente ligado com o aumento de reservatórios e vetores de doenças, causa, segundo o estudo, da disseminação de doenças tropicais nas últimas décadas. 

“O principal recurso natural explorado e comercializado é a terra e seu subsolo”, afirmam os pesquisadores no artigo. As populações locais e suas economias de produção em pequena escala foram pressionadas pelo avanço do agronegócio, causando sua progressiva invisibilização nos mapeamentos de satélites e no desenvolvimento de políticas para o desenvolvimento regional. Os dados indicam que 55% dos conflitos no campo entre 2011 e 2020 ocorreram na Amazônia Legal, atingindo mais de 100 mil famílias; mais de 300 assassinatos foram contabilizados. Só em 2021, a Amazônia registrou 52% dos conflitos por terra no Brasil. 

O estudo afirma que a exclusão dessas populações “torna inviável qualquer tipo de estratégia de conservação da floresta”, algo que foi comprovado por um levantamento da organização MapBiomas em agosto de 2021 – quanto satélites demonstraram que, entre 1985 e 2020, as áreas mais preservadas do Brasil foram as terras indígenas. “O mercado de terras na Amazônia se impõe cada vez mais e estabelece preços para a terra, tratando-a como mercadoria de caráter genérico”, aponta o estudo. A produção de terras como mercadoria estaria transformando as florestas originárias, um bem público, em patrimônio privado. O comprometimento do bioma não se deu apenas pelo desmatamento, mas também pelo uso de tecnologias químicas, mecânicas e genéticas que visam aumentar a produção no caso das monoculturas e o extrativismo, no caso da mineração. Essas atividades levam à “homogeneização” de paisagens pouco sustentáveis com impactos diretos não só na biodiversidade, mas também na saúde humana. Não só a contaminação das águas e do solo, mas a própria violência à qual as populações locais são submetidas é avaliado pelo Inpe como um “problema de saúde pública”. 

Duas regiões, citadas pela pesquisa, exemplificam a expansão pela Amazônia Legal e sua interferência no bioma. No Baixo Tocantins, na região nordeste do Pará, até meados da década de 2000, a produção de açaí se restringia às áreas de várzea e ilhas – mas com o aumento da demanda do mercado local e internacional, foram desenvolvidas variedades de palmeiras adaptadas à terra firme para expandir a produção do fruto. Árvores de diversas espécies foram cortadas para dar lugar a açaízeiros, levando a homogeneização da paisagem. O segundo caso é o da região oeste do Estado do Pará, em específico os municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, onde a monocultura da soja levou à concentração de terras e atropelou áreas de produção camponesa e ribeirinha tradicionais. Cerca de 25% da área de agricultura de pequena escala existente em 2000 foi convertida para agricultura e monocultura de larga escala em 2019. Belterra e Mojuí dos Campos também passaram a absorver a população mais pobre que foi expulsa da área rural. 

“A história dessas populações e seus modos de produzir têm sido quase sempre marcados pela marginalização e por tentativas de superação de sua economia, associada à ideia de atraso, precariedade e falta de capacidade de inovação”, relatam os pesquisadores, que sugerem a mudança dos modelos atuais de produção na região. No caso da bioeconomia, o cuidado deve ser redobrado. Se implementados, esses modelos devem estar relacionados à lógica de sistemas agroextrativistas ou agroflorestais tradicionais. “Pensar estratégias de planejamento e gestão que levem em conta as demandas locais do território e das pessoas é fundamental. Deve-se considerar a interdependência entre a integridade dos ecossistemas, os usos da terra e seus impactos na saúde”, concluem. 

Na semana passada semana, Colômbia, Venezuela e Brasil, que juntos possuem em seu território mais de 70% da floresta amazônica, sinalizaram que irão se reunir para uma cúpula ambiental. A ideia inicial foi de Lula, que durante a Conferência do Clima das Nações Unidas (COP-27) falou sobre retomar o diálogo com vizinhos para combater o desmatamento na maior floresta tropical do mundo.

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