Alimentos ultraprocessados no país da mandioca

Em entrevista ao PULSO, pesquisadora do Nupens conta como o Brasil foi pioneiro em formular guia alimentar que considera os malefícios dos processos industriais da produção de comida – e por que precisamos voltar ao arroz-com-feijão

Imagem: Agência Fapesp
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Ana Paula Bortoletto em entrevista a Gabriela Leite, no PULSO

Vão despontando aos poucos, no debate público, referências aos alimentos ultraprocessados e suas consequências à saúde. Trata-se de uma classificação que leva em conta o nível de processamento da comida como fator mais importante para saber se ela é saudável do que ser carboidrato ou proteína. Algo menos difundido é que essa concepção inovadora foi criada por pesquisadores brasileiros – mais especificamente do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), grupo ligado à Faculdade de Saúde Pública da USP. 

No último PULSO, o programa de entrevistas do Outra Saúde, a convidada foi Ana Paula Bortoletto, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e pesquisadora do Nupens. Ela falou sobre o aumento do consumo de ultraprocessados, por que é um tipo de comida que deve ser evitada e como políticas públicas e regulação podem ter impacto significativo na saúde da população. 

Ana Paula explica o processo de formulação da chamada classificação de alimentos NOVA. Os pesquisadores do Nupens avaliavam dados do IBGE que registravam o que as famílias compravam de alimentos semanalmente. O que eles perceberam foi que a obesidade e as doenças crônicas estavam aumentando apesar de o consumo de óleo, sal e açúcar diminuir ao longo dos anos. Parecia um contrassenso, levando em conta os conhecimentos de nutrição estabelecidos na época. Naquele momento, era muito difundida a chamada “pirâmide alimentar”, que determina que uma pessoa deve comer mais carboidratos em geral e menos óleos e gorduras.

“Carlos Monteiro, junto com outros colegas, começaram a olhar para outras características dos padrões alimentares que estavam aumentando e que podiam explicar o aumento da obesidade. Então eles viram que também estava crescendo o consumo de refrigerantes, bolacha recheada, refeições prontas, panificados doces”, conta Ana Paula. “Então eles construíram essa nova organização da forma como olhamos para a alimentação, com a perspectiva do objetivo e da intensidade do processamento industrial” – assim nasceu a classificação NOVA, em 2009.

Outro passo importante para o Brasil estar à frente nas pesquisas sobre nutrição foi a elaboração do Guia Alimentar para a População Brasileira, do ministério da Saúde. Publicado em 2014, foi desenvolvido em parceria com o Nupens e com o apoio da Opas/Brasil. O Guia influenciou o debate sobre alimentação por considerar os malefícios dos processos industriais na produção de alimentos e defender a importância de retornar às raízes culinárias tradicionais, como o arroz-com-feijão.

Os ultraprocessados são considerados ruins para a alimentação porque passam por níveis de industrialização grandes, baseiam-se em ingredientes muito pouco nutritivos e adicionam produtos químicos para melhorar a aparência, o gosto ou o cheiro. Para além de serem comidas pobres, seu consumo em grandes quantidades está fortemente associado ao aparecimento de doenças crônicas não-transmissíveis como diabetes e hipertensão. Mas seus males podem ser ainda mais amplos: segundo Ana Paula, pesquisas também começam a identificar relação entre ultraprocessados e câncer e até casos de depressão e demência.

Mas o Guia brasileiro vai além de indicações sobre a ingestão de alimentos. Segundo Ana Paula, “a regra de ouro diz respeito à classificação de alimentos pelo tipo de processamento, mas o Guia também fala sobre estimular as pessoas a comerem em companhia, em um local tranquilo, valorizar o tempo de alimentação, compartilhar as tarefas do preparo das refeições, preferir fazer compras onde há mais alimentos frescos, tomar cuidado com publicidade e por aí vai…” 

A situação do Brasil é preocupante. Segundo a pesquisadora, por volta de 19% das calorias consumidas pelos brasileiros vêm de ultraprocessados – e a tendência segue crescendo, em especial entre os mais pobres. As soluções para inverter essa curva devem ir além de iniciativas individuais, embora também sejam importantes. Ana Paula explica que aumentar os impostos de alguns desses alimentos é algo que já se mostrou efetivo em países como o México.

As bebidas açucaradas – refrigerantes, “sucos” de caixinha e achocolatados – são bons exemplos de produtos que podem ser taxados, conta Ana Paula. “Há estudos mostrando que aumentar o preço das bebidas açucaradas faz com que haja uma redução no consumo, com o impacto na redução de doenças relacionadas, sem ter nenhum prejuízo na economia”, explica ela, e conta que a OMS sugere um aumento de 20% no preço dessas bebidas para que haja bons efeitos na saúde pública. Um bom espaço para fazer essa discussão é a chamada Reforma Tributária, que está no horizonte do novo governo e precisa ser aproveitada pela população para que haja mudanças reais a favor das maiorias.

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