João Cabral relido pela chave da imaginação

Em obra surpreendente, pesquisadora reage ao mito da “racionalidade” do poeta pernambucano, e descobre autor notável ao expressar sentimentos e criar imagens

Por José Tadeu Arantes, na agência Fapesp

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Em obra surpreendente, pesquisadora reage ao mito da “racionalidade” do poeta pernambucano, contesta corrente majoritária da critica e descobre um autor notável também ao  expressar sentimentos e criar imagens

Por José Tadeu Arantes, na Agência Fapesp

É possível fazer uma nova leitura de um poeta consagrado e tantas vezes analisado como João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999)? A convicção de poder responder de maneira afirmativa a esta pergunta motivou a tese de doutorado de Cristina Henrique da Costa, atualmente professora no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL – Unicamp).

Apresentado como tese de doutorado na Universidade Montpellier 3, na França, em 2002, o trabalho foi depois substancialmente revisto e ampliado, dando origem ao livro Imaginando João Cabral Imaginando, publicado com o apoio da Fapesp.

“Acredito que uma certa teorização da obra de João Cabral tenha obstruído nossa capacidade de ler sua poesia, tornando-nos surdos à potência de sua imaginação poética. Procurei dar voz ao sentimento, tanto o meu, como leitora, quanto o do poeta, lutando contra a tentativa da crítica de silenciar esse sentimento em nome da razão, por meio da criação do mito de um poeta inteiramente racional”, disse Cristina à Agência FAPESP. “Nossos sentimentos poéticos podem ser muito claros, e, pensando bem, de onde vem a autoridade que os decreta obscuros? Não se pode ler um poema como o “Cão sem plumas” sem sentimento, ou como obra racional, embora seja o mais claro poema de João Cabral”, prosseguiu.

A pesquisadora revalorizou os elementos surrealistas presentes na obra do poeta pernambucano. E, para tanto, apoiou-se nas contribuições à teoria e à crítica literárias do filósofo francês Gaston Bachelard (1884 – 1962). Bachelard é mais conhecido no Brasil por seus escritos em filosofia e epistemologia da ciência, que constituíram, conforme a interessante classificação por ele mesmo proposta, sua “obra diurna”. Mas houve também um Bachelard “noturno”, que se dedicou especialmente à prática e ao estudo da imaginação. “Ele considerou a imaginação uma faculdade fundamental, não subordinada à razão, nem ao discurso do inconsciente, na acepção psicanalítica – uma faculdade à qual atribuiu grande parte da criatividade humana”, afirmou Cristina.

Declarado o embasamento teórico de seu livro, porém, a pesquisadora ressaltou que não o escreveu para exemplificar uma teoria. “O que se faz muito é adotar uma teoria e aplicá-la a determinada obra. Com isso, tendo-se decidido de antemão o que a obra irá dizer, é possível fazer com que ela diga qualquer coisa que se queira provar. Não foi o que eu pretendi fazer. Parti da hipótese de descobrir alguma coisa, sem saber o que era. Só assim me pareceu possível enfrentar essa leitura. Mas precisei fazer um grande esforço. Para uma professora de teoria literária, nada é mais fácil do que teorizar”, disse.

Assim, Costa procurou tanto compreender a gênese da poesia cabralina, investigando seus Primeiros poemas, publicados apenas em 1990, quanto reler, pelo método da exaustividade, seus poemas consagrados, especialmente os livros que vão de Pedra do sono (1942) ao Cão sem plumas (1950).

“Comecei pelos primeiros poemas, escritos por João Cabral na adolescência, até os 20 anos de idade. Reza a lenda que, mais tarde, ele chegou a rasgar esses poemas e jogar fora. E que sua primeira esposa, Stella Maria Barbosa de Oliveira, os recolheu e colou. Só foram publicados meio século depois. Usei esses poemas querendo contestar uma tese básica da crítica à obra cabralina, que consiste em dizer que o poeta se valeu do procedimento surrealista como subterfúgio psicológico, para descrever suas obsessões, e depois renegou o surrealismo. Eu quis mostrar, já nos primeiros poemas, que, em vez de cartilha psicológica, o surrealismo foi para ele uma opção estética mais interessante que o simbolismo. Procurei, com isso, revalorizar o surrealismo de João Cabral”, relatou Costa.

É certo que João Cabral não utilizou a chamada “escrita automática”, a livre associação de palavras, considerada o método por excelência do surrealismo. Mas, segundo a pesquisadora, ele recorreu a outro recurso surrealista que é uma certa concepção da imagem. “Esse recurso é muito forte na obra do poeta francês Pierre Reverdy (1889 – 1960). Do meu ponto de vista, Reverdy é uma referência básica para entender João Cabral. Assim como Murilo Mendes (1901 – 1975)”, afirmou.

Diferentemente da metáfora, que consiste em algum tipo de substituição de uma palavra por outra, em função de alguma analogia que se possa perceber entre elas, a imagem, tal como foi concebida por Reverdy, pressupõe a aproximação de duas realidades que nunca foram aproximadas. Teorizando sobre o tema, assim escreveu o poeta francês: “A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais distantes e justas as relações entre as duas realidades aproximadas, mais forte será a imagem”.

“Essa definição de imagem é fundamental para compreender também o que esteve em jogo para João Cabral como criador de imagens, e não apenas como pensador preocupado ‘racionalmente’ com definições metapoéticas. Pode-se afirmar que nele toda aquela discussão sobre o signo, sua fragilidade, sua impossibilidade moderna de representar alguma coisa, foi superada pelo desejo de criar imagens novas com as palavras. O que não significa que essas questões não o tenham ocupado. Ao contrário, tratou de tentar resolvê-las com imaginação”, discorreu a pesquisadora.

Como exemplos das muitas imagens “reverdyanas” presentes na obra de João Cabral, Cristina citou os próprios títulos dos livros Pedra do sono e Cão sem plumas. “O ‘cão sem plumas’, de João Cabral, é aquilo que Reverdy chamaria de ‘imagem inadaptável’, a imagem que, uma vez enunciada, passa a designar aquilo que antes não tinha nome”, afirmou. “Assim como a ‘mulher vestida de gaiola’, a ‘faca só lâmina’, a ‘paisagem zero’, e tantas outras.”

Tais imagens não são de forma alguma arbitrárias. Se não correspondem a coisas perceptíveis pelos sentidos realisticamente disciplinados, correspondem por certo a um sentimento poético sobre as coisas. O “cão sem plumas”, ao qual o poeta pernambucano comparou o rio Capibaribe, que atravessa a cidade de Recife, é algo que, por assim dizer, “estava lá”. Faltava que alguém o imaginasse e o nomeasse.

As primeiras quatro estrofes do longo poema estabelecem com precisão a que essa imagem refere:

A cidade é passada pelo rio

como uma rua

é passada por um cachorro;

uma fruta

por uma espada.

O rio ora lembrava

a língua mansa de um cão,

ora o ventre triste de um cão,

ora o outro rio

de aquoso pano sujo

dos olhos de um cão.

Aquele rio

era como um cão sem plumas.

Nada sabia da chuva azul,

da fonte cor-de-rosa,

da água do copo de água,

da água de cântaro,

dos peixes de água,

da brisa na água.

Sabia dos caranguejos

de lodo e ferrugem.

Sabia da lama

como de uma mucosa.

Devia saber dos polvos.

Sabia seguramente

da mulher febril que habita as ostras.”

Assim utilizada, a imagem assumiria um importante papel cognitivo, ampliando, uma vez enunciada, a visão que se tem da realidade. Isso daria ao poema um valor político, independentemente da temática o ser ou não. “Na metáfora, estamos sempre dependentes do passado: uma coisa que lembra outra coisa, e nos prende ao arcaico. A imagem, ao contrário, nos projeta para o futuro imaginável”, comentou Cristina.

Para penetrar no mundo das imagens cabralinas, a pesquisadora recorreu, ela mesma, à imaginação. “Meu método foi usar a imaginação para entrar em poemas que me pareciam de início inteiramente incompreensíveis e herméticos. A primeira leitura de A educação pela pedra (1966) foi, para mim, a experiência de não entender nada. Então, eu me pus a imaginar suas imagens, no lugar de ter que explicá-las racionalmente, ou no lugar de não compreendê-las, atitudes que são para mim as duas faces de uma mesma moeda da leitura que teoriza. E descobri que, imaginando as imagens dos poemas desse livro, podia chegar a um conteúdo afetivo, estabelecendo com elas uma relação de simpatia. Minha pretensão foi superar, por meio da imaginação, o mito do poeta racional, que o próprio João Cabral construiu e a crítica comodamente corroborou”, explicou.

“É curioso, de fato, que se dê mais ouvidos às intenções declaradas pelo poeta do que aos seus próprios poemas. Ora, o que João Cabral disse em entrevistas não foi o que ele fez na poesia, felizmente. Foi preciso também fazer a experiência de leitura dessa contradição para olhar a beleza e a violência de João Cabral. Considerem-se as imagens de esfolamento, corte, feridas, facas, ácidos, pontas e esqueletos afiados por dentro, para nem falar dos mortos cremados, dos corpos apodrecidos, das flores fecais e das diversas decomposições retratados em seus poemas. Mas, elas estão lá, assim como as mulheres ondas, calores uterinos, pães quentes, luzes internas e ovos misteriosos, que ajudam a compor um mundo habitável. Isso pouco tem a ver com frieza objetiva e projeto racional, embora possa ser compreendido claramente e compartilhado pela leitura”, argumentou a pesquisadora.

Embora o empenho de Cristina Henrique da Costa tenha sido acessar a poesia de João Cabral a partir dela mesma, e não de sua inserção na história, a pesquisadora não pôde se furtar à descoberta de uma relação tensa, intranquila, entre João Cabral e sua herança histórica. “Nascido como poeta no contexto da ditadura do Estado Novo (1937 – 1945), em um universo de censura, em uma região sitiada [o governador de Pernambuco, Lima Cavalcanti, foi acusado de envolvimento com o comunismo], João Cabral desde então falou, à sua maneira, do real proibido. Sua ‘objetividade’, longe de indicar uma posição de distância em relação aos seus objetos, apontou muitas vezes para o drama da impossibilidade de objetivar aquele que dos objetos desejava falar. Em João Cabral, a valorização do real não deixa também de ser uma máscara para dissimular a recusa de se assumir como parte da realidade”, concluiu.

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