Por que um atentado em Barcelona?

Um ativista brasileiro escreve: cidade é marcada pela resistência à especulação imobiliária e pelo acolhimento aos estrangeiros. Agora, tudo isso será mais difícil

Março de 2016: milhares saem às ruas em Barcelona para protestar contra as políticas europeias para imigrantes, classificadas como "racismo institucional"

Março de 2016: milhares saem às ruas em Barcelona para protestar contra as políticas europeias para imigrantes, classificadas como “racismo institucional”. Na prefeitura, Ada Colau protege refugiados

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Por Flávio Carvalho

Trabalho em Barcelona (moro há 12 anos na Catalunha) e estive com meus filhos, dois dias antes do atentado, em Las Ramblas, local do atentado terrorista. A cidade está com mais turistas do que normalmente já tem, mas fizemos algo impensável para a maioria de nós, moradores: a típica foto sobre a pintura de Miró, na calçada, em frente ao Mercado da Boqueria – eleito por uma associação de mercados públicos mundiais como o melhor de todos. Logo, viajei urgente pra Olinda, para acompanhar de perto o grave estado de saúde do meu pai, na UTI. Nestes momentos, tendemos a pensar que fomos salvos: eu (pelo meu pai, muito doente), porque havia programado um curso para realizar bem ali perto, das Ramblas, sobre ajuda aos brasileiros recém chegados na cidade, sobre seus direitos e deveres. Coincidentemente, o curso estava programado para as 17 horas daquele dia 17 (deste mês de agosto), mesma hora do atentado. Ali mesmo, na sala de uma ONG – que nos cederia gentilmente o espaço.

Todos que lá moramos, hoje não deixamos de pensar o quanto poderíamos, cada um de nós, haver cumprido o ritual de passear pelas Ramblas, num caloroso dia típico de férias de verão europeu. A cidade também é nossa, reclamamos com indignação, muitas vezes, aos turistas. Principalmente porque os moradores do centro turístico estão sendo expulsos pelo processo de gentrificação intenso (quando os interesses imobiliários dos grandes grupos inversores se sobrepõem ao direito de moradia da maioria dos cidadãos), pela especulação imobiliária de sempre – e até então cada vez maior. Todos sabemos que Barcelona estava recebendo os turistas que evitavam os destinos turísticos atacados pelo terror: Paris, Londres, etc. Como trabalhei sempre em Barcelona com o tema “viagem” (por turismo ou por migração, duas pernas de um mesmo corpo), lamento fazer agora alguns prognósticos pessimistas para a cidade, exatamente em um momento muito oportuno para toda a Catalunha, às vésperas do referendo que poderá mudar nossas vidas: não se sabe para que sentido ou direção, mas se sente fortíssima, nas ruas da Catalunha, a oportunidade da mudança.

Primeiro, porque a Espanha, não tem sido capaz de sair da “monocultura” do turismo barato. Pagando salários miseráveis aos imigrantes que ocupam os piores postos de trabalho, enquanto os grandes grupos hoteleiros enfrentam as políticas de esquerda da mulher que mais combateu a especulação imobiliária nos últimos anos, antes e depois de ser prefeita de Barcelona, Ada Colau. Quem pagará novamente esse pato? Os imigrantes. Incluindo as dezenas (ou centenas) de brasileiros que chegam cada dia (posso lhes assegurar, porque trabalho cotidianamente com isso, voluntariamente mais que profissionalmente). Brasileiros que “fogem” do Brasil, expulsos por tudo isso que vocês já sabem que está passando no nosso país.

Em segundo lugar, porque aumentarão os controles migratórios sobre todos aqueles que não são europeus. Aumentará ainda mais a desconfiança generalizada e burra contra os imigrantes, a xenofobia, assim como já está acontecendo em toda a velha Europa. E não é verdade que a Espanha estivesse longe disso. Todos os brasileiros em situação irregular que eu conheço (e não são poucos, também posso lhes garantir) estarão infelizmente mais sujeitos a serem parados a qualquer momento para serem investigados pela polícia. Evidentemente de forma discriminatória. Prefiro, portanto, ser mais realista e começar a alertar o nosso país, ativando políticas públicas de mais proteção dos direitos dos brasileiros migrantes, em situações como esta. E exatamente por haver assinado e ajudado a liderar, recentemente, um manifesto a favor do referendo na Catalunha, até mesmo como uma oportunidade de construir uma nova política migratória naquele “pequeno país”, conhecido historicamente e ironicamente como um dos mais importantes territórios de acolhida de toda a Europa. Um único dado exemplar: na mesma medida em que a direita espanhola que governa o Reino expulsa do sistema de saúde pública os migrantes irregulares e os prende em presídios disfarçados de Centros de Internamento, a Catalunha enfrenta as leis espanholas criando uma legislação própria, para garantir o direito à saúde, e a Prefeitura de Barcelona concede documentos de integração aos indocumentados, porque se estivessem absolutamente “sin papeles” (sem nenhum documento) poderiam ser presos ou expulsos a qualquer momento, por mais que tivessem família ou algum trabalho informal.

Lamentável, portanto, tudo o que está acontecendo e o que ainda poderá vir a acontecer. Estávamos, infelizmente, na Catalunha, acostumados a sobreviver em um nível 4 de alerta terrorista. Haveremos, por força das circunstâncias, de viver sobre o nível máximo, o 5. Para que os brasileiros entendam, é como essa sensação terrível de termos que nos “acostumar” em viver nessa insegurança pública brasileira, em um clima de guerra nas ruas, como se nada estivesse acontecendo. Barcelona não merece. A Catalunha e o Brasil não merecem. Atuemos. E sejamos ainda mais solidários. E isso porque eu nem entrei no assunto dos refugiados na Europa…

Flávio Carvalho é sociólogo

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