Os estertores da GM e a inércia social

Acima do esplendor, a tempestade

Acima do esplendor, a tempestade

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Injeção de 60 bilhões de dólares em empresa sem futuro, atuando num setor que produz devastação, ajuda a enxergar um dos grandes obstáculos à existência de sociedades não-alienadas

Num artigo melancólico, publicado ontem no Financial Times e reproduzido hoje na Folha (leia no clip de hoje), Robert Reich, ex-secrerário do Trabalho dos EUA, analisa a estatização da General Motors (GM) pelos governos dos EUA e Canadá, revelando que ela era ao mesmo tempo desastrosa e inevitável.

Em sua tentativa desesperada de salvar a empresa, conta Reich, Washington injetará nela US$ 50 bi; Toronto, mais US$ 9,5 bi. Juntos, os dois Estados passarão a deter 72,5% do capital da GM, tendo como sócio o sindicato UAW (17,5% das ações). Mas o que à primeira vista seria o controle de uma mega-empresa pela sociedade e seus assalariados tem sentido fúnebre. Os governos dos EUA e Canadá declaram que querem revender a empresa assim que possível. A reestruturação, que começará imediatamente, vai convertê-la, na melhor das hipóteses, numa pálida sombra do que foi. A GM fechará doze fábricas, em seu país de origem. Abrirá mão de sua unidade européia (a Opel, na Alemanha). Não se sabe se manterá as posições na América Latina (inclusive Brasil) e Ásia. Venderá ou abandonará quatro de suas marcas. Demitirá ao menos 21 mil empregados, e reduzirá direitos trabalhistas dos que permanecerem. Espera-se que, após este radical enxugamento, passe a responder por não mais de 20% das vendas de automóveis nos EUA — contra mais de 50%, há cerca de três décadas.

A presença estatal em sua direção, explica Reich, infelizmente não levará a GM a produzir uma nova geração carros verdes —  já viáveis, do ponto de vista tecnológico. Persiste, no Congresso e no governo, a opinião de que não cabe à sociedade “dizer à indústria que automóveis produzir”. E, ainda que o enxugamento seja bem-sucedido, (muitos analistas avaliam que a GM sucumbirá antes disso), ninguém aposta que os Tesouros dos EUA e do Canadá ficarão próximos de recuperar o que estão investindo agora, ao revender a empresa.

Haveria, prossegue o ex-secretário, diversas maneiras de empregar melhor os US$ 60 bilhões. Eles poderiam estimular, por exemplo, a ativação de setores mais limpos e promissores na região do meio-oeste norte-americano, onde se concentra a indústria automobilística em crise. Ou ser investidos em pesquisa e geração de energias renováveis ou transporte público — igualmente capazes de gerar ocupações e atividade econômica. Parte dos recursos financiaria medidas paliativas e provisórias, como treinamento dos demitidos e seguro-desemprego. Se há alternativas tão mais atraentes a longo prazo, de quem é, então, a culpa por não serem adotadas? Do presidente Obama?

CONSERVADORISMO E ALTERNATIVAS: O artigo de Reich tem o mérito de buscar uma explicação mais profunda. “Os políticos não ousam falar em reestruturação industrial porque o público não quer ouvir esta conversa”, diz o ex-secretário. Há um sentimento geral de que a injeção de dinheiro na empresa moribunda é desperdício. Mas prevalece, acima dele, a inércia social: a dor da mudança e o medo das incertezas e desconhecidos necessariamente associados a ela.

As centenas de milhares de trabalhadores da GM que acreditam conservar seus empregos (ao menos por enquanto) preferem não olhar para o futuro sombrio da empresa, nem para os resultados ambientais de sua atividade. As cidades onde há fábricas da companhia também não querem perdê-las, se isso significar desemprego, marginalização, queda do dinamismo econômico. Embora tenha surgido uma consciência ambiental e social planetária, um enorme obstáculo permanece no caminho. Como transformar este sentimento em ação, se a grande maioria dos seres humanos precisa comprar sua vida todos os dias — e é obrigada, para tanto, a vender seu trabalho, nas condições que for possível? Como pedir a alguém que deixe o emprego numa fábrica de armas, ou numa montadora de automóveis, sem oferecer uma forma alternativa de participação no conjunto das riquezas produzidas pela sociedade?

O desperdício de 60 bilhões de dólares na GM pode ser, nesse sentido, um alerta necessário. Ele ressalta a importância de construir, além da crítica às sociedades governadas pelos mercados, respostas positivas e anti-sistêmicas. No caso da crise, a denúncia das montanhas de dinheiro despejadas pelos Estados em favor do sistema financeiro, ou de empresas como a GM, é sempre bem-vinda — mas muito insuficiente.

O passo novo estaria em ressaltar, por exemplo, que em um ano de crise os Estados dispenderam cerca de 3 trilhões de dólares para socorrer bancos quebrados. E em propor que ao menos a mesma soma seja empregada para assegurar, a todos os habitantes do planeta, uma renda básica universal.Significaria, na ponta do lápis, assegurar 1,17 dólares a cada um dos quase 7 bilhões de seres humanos. Permitiria dobrar os rendimentos de 1 bilhão de pessoas  (que sobrevivem com menos de 1 dólar por dia) e elevar em 50% o poder aquisitivo de 2,7 bilhões (que ganham menos de 2 dólares diários).

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