Em debate, o futuro das finanças

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Ação dramática do Fed evitou, em 16/3, o desmoronamento dos mercados e o “inverno nuclear” das economias. Mas há armadilhas à frente, e o debate sobre a reorganização do sistema parece inevitável

Aos poucos, vai se dissipando a bruma que pairava sobre a gigantesca operação de salvamento montada pelo banco central dos EUA (Federal Reserve, Fed) no fim-de-semana retrasado, para evitar o colapso do banco de investimentos Bear Stearns. Está claro que o Estado norte-americano comandou, pelas mãos do Fed, a compra do Bear Stearns pelo JPMorgan/Chase. Para fazê-lo, o Fed quebrou uma regra em vigor desde a crise de 1929, e passou a socorrer também o “sistema financeiro das sombras” (shadow financial system), que cria dinheiro e crédito sem qualquer controle público — e pode, portanto, montar pirâmides que desabam e põem em risco a economia. Em quatro dias (de segunda, 17/3 a quinta-feira, 20/3), o volume de recursos liberado a um punhado de instituições financeiras privadas chegou próximo dos 60 bilhões de dólares: duas vezes e meia o PIB da Bolívia, com seus 10 milhões de habitantes. Admitiram ter mamado nas tetas do Estado instituições de nomes fulgurantes: Golden Sachs, Lehman Brothers e Morgan Stanley — essas mesmas, símbolos de um sistema que vê em programas como o bolsa-família sinais de populismo e atraso.

Seria tentador, porém simplista, tratar a operação do Fed como mero favorecimento à plutocracia. O Bear Stearns era um ator central nos mercados de Credit Default Swap (CDS). Provavelmente pouquíssimo conhecido por você, por quem redige esta nota e por virtualmente toda a população do planeta, o CDS movimenta contratos avaliados entre 10 trilhões (segundo The Economist) e 45 trilhões de dólares (segundo o blog do economista Nuriel Roubini) — de cinco a 25 vezes maior que a produção anual de bens e serviços no Brasil. Se o Bear Stearns quebrasse, deixando de honrar compromissos, haveria grande risco de o CDS desabar, provocando a ruptura em cadeia de contratos dos quais depende hoje, por exemplo, quase todo o comércio internacional. É a esse fenômeno que The Economist se refere como o “inverno nuclear da economia”. Hoje, todos os analistas sérios dos mercados financeiros internacionais concordam que haverá, adiante, novas ameaças semelhantes à representada pelo Bear Stearns.

Conhecidos muito superficialmente pelos cidadãos comuns, pela sociedade civil organizada e mesmo pelos dirigentes políticos, os mercados financeiros poderão ser reorganizados nas próximas semanas e meses, em conseqüência da crise. Vale a pena ler, por exemplo, o longo artigo publicado pelo New York Times a tal respeito, no domingo (23/3). O texto revela a existência de uma janela de oportunidade.

Ao oferecer, desde 16/3, ajuda ao “sistema financeiro das sombras”, o Fed ultrapassou tanto uma barreira moral quanto uma regra de ouro dos mercados. Há décadas, as sociedades reconhecem a importância central das finanças para produção de riquezas. Não são raras as intervenções dos bancos centrais para evitar as chamadas “crises sistêmicas” do setor bancário — responsável por oferecer o crédito de que as economias necessitam para funcionar. Há, porém, uma contrapartida: toda a atividade bancária é rigidamente controlada pelas autoridades monetárias.

Desde 16/3, o Fed passou a abrir linhas de crédito bilionárias a instituições que não estão obrigadas a prestar contas sobre nenhum de seus atos. Além de eticamente indefensável, a atitude cria, nos mercados financeiros, uma desigualdade (“assimetria”) a mais, que será muito difícil digerir. Se os bancos comerciais — conhecidos por sua força econômica e poder politico — precisam submeter-se a tantos regulamentos, para ficar sob a proteção das autoridades monetárias, por que o shadow financial system poderia ter os mesmos benefícios, sem obrigar-se perante o Estado?

Que tal moedas alternativas, regidas por novos princípios éticos?

O texto do New York Times revela que o tema já é objeto de debate no Congresso dos EUA. Diversos parlamentares, ligados principalmente ao Partido Democrata e atuantes nos comitês de economia e finanças do Legislativo, estão rascunhando projetos de lei que estendem o controle do Fed ao “sistema financeiro das sombras” — ou criam novas agências estatais para regular tais instituições. É divertido acompanhar os argumentos contrários, que partem principalmente de integrantes e apoiadores do governo Bush. “Se não houver muita cautela para reestruturar um sistema financeiro ultra-complexo, poderemos dispersar os instintos animais necessários para um mercado livres. A cada dia, as exigências populistas tornam-se mais fortes e podem perturbar as boas políticas econômicas”, afirma, por exemplo, Mark Bloomfield, presidente do American Council for Capital Formation, uma agência de lobby.

As propostas do Partido Democrata dos EUA para regulamentação dos mercados são extremamente tímidas. Nenhuma delas debate, por exemplo, a concentração de riquezas galopante — que empobrece as famílias assalariadas e transforma o endividamento na única alternativa para preservar uma vida digna. A impressionante sofisticação dos sistemas financeiros não poderia inspirar, por exemplo, a criação de moedas paralelas, regidas por princípios como a colaboração, a circulação permanente de riquezas, o castigo aos que pretendem concentrá-las e aos especuladores?

Ocorre que, apesar de seus limites, o debate aberto nos Estados Unidos é o maior espaço institutucional existente hoje para questionar o presente e o futuro do sistema financeiro. O Banco Central Europeu, que seria uma alternativa, adota uma política monetária muito mais conservadora que a do Fed, e nenhum parlamento da Europa se propôs, até o momento, a discutir a crise com a sociedade ou mesmo entre seus pares. São sinais da ditadura financeira. A novidade é que há, agora, uma brecha para questionar o futuro. O blog procurará tirar proveito dela.

Operação em risco: Em novo sinal de como são problemáticas as operações de salvamento do sistema financeiro, surgiram nesta segunda-feira (24/3), sinais de que a aquisição do Bear Stearns pelo JPMorgan/Chase pode estar em perigo. Os jornais noticiaram, subitamente, que o Morgan fez novo lance pelo Bear, agora cinco vezes maior. A oferta inicial, monitorada pelo Fed, foi rejeitada por parte significativa dos acionistas do Bear. Apesar do montante astronômico que envolvem — US$ 30 bilhões, em fundos públicos, para garantia do Morgan contra eventuais dívidas descobertas do Bar –, as negociações transcorrem há uma semana, em completo sigilo.

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4 comentários para "Em debate, o futuro das finanças"

  1. Sabine Rosado disse:

    Preciso reaver um texto que circulou na Internet onde eram citadas as incoerências entre o atentado (11/09) e os efeitos surtidos. Nele, entre outros, salienta-se que o horário da ocorrência é anterior ao de trabalho, desta forma o ataque poderia ter sido um teatro pois americanos mesmo naquela hora eram poucos. Que foi determinado sua procedência por ter sido encontrado num porta-luvas de um carro pertencente a um iraquiano, um manual que explicava como pilotar um avião. Então, este fato foi forjado pelos EUA abrindo precedentes p/ início da guerra, onde a busca real era o domínio sobre o petróleo. Acho que do que me lembro dei boas indicações, e não me sinto como alguém que escreve hoje para saber de fatos passados até pq esta foi uma alavanca (gastos do Bush) que pode ter contribuído bastante para os EU estarem nessa crise financeira. Acho estranho que não se comenta mais sobre a guerra que ainda acontece e as quantias liberadas ao Bush por essa razão.

  2. João Pedro disse:

    Prezado Antonio,
    Neste aspecto da ilusão inversa, tens toda a razão.
    Por fim, parace-me que concordamos que o melhor é o velho ditado: nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
    Grande abraço, João Pedro.

  3. João Pedro disse:

    Antonio, se considerares oportuno, uma tréplica.
    Não consigo enxergar fraqueza na atual posição norte-americana, antes pelo contrário, eles estão demonstrando todo o seu poder ao submeter as demais moedas.
    Eles criam bolhas e as estouram em nossas cabeças e o que se houve, de todos os lados, são apenas pedidos de clemência.
    É certo que parte destes estouros também é pago pela sociedade norte-americana, mas parece que isto ainda não a preocupa, apesar de enfrentar uma grande concentração de renda.
    Hoje a força dos EUA é maior do que a que detinha em Breton Woods, pois lá nasceu a bipolaridade enquanto que hoje além de o mundo ser unipolar, não se vislumbra (por causa da hegemonia militar) a sonhada multipolaridade.
    Se quisermos ganhar o jogo, antes de tudo, é preciso mostrar a força do adversário, pois se entrarmos em campo acreditando que o outro time está fraco é grande a possibilidade de derrota.
    De qualquer modo, a minha questão central é somente sobre o enfoque.
    Caso optemos por dizer que eles estão fracos, isto faz com que a opinião pública seja induzida ao relaxamento.
    Ao contrário, se denunciarmos o super-poder e seus efeitos deletérios isto sim poderia mobilizar a opinião pública contra ele.
    Agradeço o espaço para o debate, abraços. João Pedro.
    Resposta:
    Caro João Pedro:
    Teus comentários são sempre bem-vindos. Também sou contra a tradição das avaliações ufanistas, segundo as quais os bons sempre vencerão. Mas repare que exagerar a força do adversário pode ser ilusão inversa, e transmitir a idéia de que é melhor relaxar, já que a derrota é certa… Sigamos debatendo.
    Abração
    Antonio

  4. João Pedro disse:

    Antonio,
    Permita um contraponto.
    Entendo que a coisa é bem simples e mostra como a economia hegemônica traça e manipula ao seu bel prazer as regras do sistema financeiro internacional.
    Eles são sempre muito simples, diretos e pragmáticos. Como foi o acordo de Breton Woods (com a designação do dólar como a principal moeda de reserva mundial e o conseqüente abandono do padrão-ouro) e como foi a decisão, em 1971, de extinguir unilateralmente a paridade fixa.
    Nesta oportunidade eles simplesmente informaram que o dólar não seria mais automaticamente convertido em ouro fazendo com que os demais países ficassem, de repente, por decisão unilateral de Nixon, com um papel pintado de verde nas mãos e, para que não virasse mico, tiveram que aceitá-lo como única moeda de reserva mundial.
    É claro que tudo isto aconteceu graças ao crescente poderio econômico-militar dos irmãos do norte.
    Simples, extremamente simples; eles com o dedo no gatilho e os outros com o peito exposto. Só restou desfraldar a bandeira da rendição.
    Para mim, fica claro que eles montam sistemas e criam ideologias que, no limite, somente servem para privatizar o lucro e terceirizar o prejuízo, quando:
    1) “o Fed ultrapassa tanto uma barreira moral quanto uma regra de ouro dos mercados”;
    2) “não são raras as intervenções dos bancos centrais para evitar as chamadas crises sistêmicas”;
    3) “o Fed quebra uma regra e passa a socorrer também o sistema financeiro das sombras, que monta pirâmides”; e
    4) “os símbolos do sistema” (Golden Sachs, Lehman Brothers e Morgan Stanley) mamam descaradamente nas tetas do tesouro.
    Não é por nada que eles continuam defendendo “os instintos animais necessários para um mercado livre”.
    De qualquer modo, ser cético não dá o direito de ser omisso por isto é preciso apoiar todo o movimento que vise, pelo menos, mitigar este poder demolidor dos EUA e iniciar um planejamento visando escapar do atual círculo perverso da dominação financeira.
    Se com esta oportunidade de debate, pelo menos, restar o desmascaramento dos falsos oráculos, como as empresas de rating e os Alan “bolha” Grespan, já teremos ganho muito.
    Resposta:

    Prezado João Pedro:

    Obrigado pelas contribuições ao blog, sempre muito bem fundamentadas. Identifico uma leve discordância: penso que é preciso, além de constatar a hegemonia norte-americana, examinar seus altos e baixos. Em Bretton Woods, os EUA estavam com a faca e o queijo na mão, em praticamente todos os terrenos. Hoje o quadro é outro. A liderença econômica está em xeque há muito e a financeira tem sido abalada tanto pelo endividamento quanto, aos poucos, pelo surgimento de outras praças financeiras concorrentes às norte-americanas. Acho que haverá uma grande janela de oportunidade adiante, e que precisamos nos preparar para ela. Mas concordo contigo no fato de que nada garante o fim do domínio dos EUA. Publicaremos hoje, aliás, um artigo do José Luís Fiori a respeito. Precisamos manter o debate no jornal e no blog. Grácias, de novo.
    Abração
    Antonio

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