Um continente dividido pela democracia

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Golpe de Estado no Paraguai:  de um lado, o eixo de influência de Washington, do outro, organização transnacional da Unasul  

Por Felipe Amin Filomeno*

O golpe de Estado parlamentar ocorrido no Paraguai no mês passado desencadeou uma série de reações internacionais que revelaram, mais uma vez, o declínio da hegemonia dos EUA na América do Sul. Uma das principais indicações disto foi a discrepância entre as reações do Mercosul, da Unasul e da Organização dos Estados Americanos (OEA) ao problema. Enquanto Mercosul e Unasul condenaram frontalmente o golpe e tomaram medidas de pressão para a restauração da democracia no Paraguai, a OEA – organismo regional em que os EUA ainda tem grande influência – preferiu adotar o papel de observador conivente.

Numa demonstração de união e celeridade na defesa da democracia, enquanto o golpe ainda se desenrolava no Paraguai, a Unasul enviou missão diplomática ao país para tentar evitar sua conclusão. Por outro lado, na OEA, havia uma divisão entre os países-membros sobre o tema. Países como a Venezuela e a Nicarágua defendiam a condenação direta do golpe de Estado, enquanto países como México e Honduras – com apoio discreto dos EUA – defendiam o envio de uma missão ao Paraguai para apurar os fatos. Já o Brasil defendeu que grupos sub-regionais (Unasul e Mercosul) tivessem maior atuação na questão, numa demonstração da assertividade da América do Sul em relação a uma organização em que os EUA predominam (OEA). Afinal, foi decidido que a OEA enviaria uma missão diplomática ao Paraguai, que lá ficou de primeiro a três de julho.

No dia 10 de Julho, o secretário-geral da OEA emitiu o relatório resultante da missão, o qual está disponível no site da organização. Essencialmente, ele propõe que OEA “espere pra ver” sob o argumento de não prejudicar “a corrente situação de estabilidade econômica, social e política” que o Paraguai desfruta. Chega a ser risível. Qualificar a situação de politicamente estável quando um golpe de Estado recém ocorreu e de socialmente estável em vista dos conflitos abundantes no meio rural paraguaio (que foram, de acordo com os próprios golpistas, parte da motivação para o impeachment de Lugo). O relatório ainda recomenda que o Paraguai não seja suspenso da OEA, pois isto aumentaria divisões existentes na sociedade paraguaia e implicaria sanções econômicas indiretas, por seu impacto sobre “outras instituições do sistema inter-americano”. Como não sou expert em direito internacional e regional inter-americano, só me resta questionar se realmente não seria possível suspender o Paraguai sem que isto afetasse, por exemplo, empréstimos do Banco Inter-Americano de Desenvolvimento ao país.

Tendo em vista que são os EUA e países sob sua órbita de influência a defender uma posição mais soft da OEA em relação ao golpe no Paraguai, é preciso apontar algumas incoerências na posição de Washington. Em setembro de 2011, por exemplo, o governo dos EUA informou que votaria contra empréstimos à Argentina no Banco Mundial e no Banco Inter-Americano de Desenvolvimento enquanto este país não resolvesse pendências com credores estadunidenses prejudicados com a moratória argentina de 2001. Interessante notar que, quando há dívidas com credores estrangeiros, os EUA não hesitam em suspender empréstimos usados para programas de desenvolvimento econômico e social na Argentina, mas, quando um golpe de Estado remove um presidente eleito pelo povo, subitamente surge uma preocupação com sanções econômicas que possam prejudicar os paraguaios.

Outra incoerência é que, por pressão dos EUA, Cuba permaneceu impedida de participar da OEA por 47 anos porque seu regime político não é democrático. Em 2009, a votação que retirou o embargo da OEA a Cuba ocorreu na ausência de Hillary Clinton, que deixou a reunião da entidade afirmando que um consenso não havia sido alcançado sobre a questão. Interessante notar que, quando se trata de um regime não-democrático hostil aos EUA, o governo deste país mostra-se árduo defensor da democracia, incluindo sanções políticas e econômicas (as quais tem prejudicado o povo cubano). Porém, quando se trata de regime não-democrático simpático aos EUA, a defesa da democracia deixa de ser incondicional. Vale lembrar que estas incoerências tem vários antecedentes históricos, como, por exemplo, o apoio dos EUA a ditaduras militares na América Latina no século XX.

A reação do Mercosul e da Unasul ao golpe no Paraguai mostrou o compromisso da região com a democracia. Também houve neste caso, porém, alguns problemas. A admissão da Venezuela, embora traga grandes vantagens para o Mercosul, ocorreu num quadro institucional excepcional, dada a suspensão de um Estado-parte fundador do organismo regional. Além disso, a suspensão do Paraguai, embora correta, não envolveu diálogo preliminar com o governo golpista instalado tal como exigem certas regras do Mercosul. Por outro lado, a postura da OEA revela hipocrisia e incoerência na defesa da democracia nas Américas, aprofundando a divisão entre seu Norte e seu Sul, e indicando o declínio da hegemonia americana na região.

*Doutor em Sociologia pela Johns Hopkins University (felipeaminfilomeno.wordpress.com)

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Um comentario para "Um continente dividido pela democracia"

  1. Marco Antonio disse:

    Da manifestação cautelosa e descomprometida da OEA no caso do impeachment paraguaio entende-se que a instituição (e os EUA, certamente) está deixando muito corretamente a questão para ser tratada no âmbito dos organismos regionais (Mercosul e Unasul). A OEA tem sido uma organização absenteísta que costuma se manifestar tão somente quando do interesse dos EUA e convenhamos, o Obama tem mais com que se preocupar no momento. Nenhuma das duas organizações, no entanto, demonstrou ter maturidade e visão estratégica diante dos fatos sobre os quais foram chamadas a opinar. Seria de se esperar que, no mínimo, esses organismos trouxessem o novo governo paraguaio para discutir a matéria antes de se decidirem pelo ingresso da Venezuela no Mercosul, como se o Paraguai não tivesse sido um de seus sócios fundadores. Foi oportunismo puro, uma evidente descortesia diplomática que o Estado Paraguaio certamente não vai esquecer no futuro. O ingresso da Venezuela no Mercosul é estratégica, porque traz para a entidade as maiores economias do subcontinente, mas da forma como foi feito, atravessou o samba, soou como um ato de vontade do Brasil, Argentina e Venezuela. Foi uma decisão com méritos, mas tomada de uma forma capenga, que se poderia esperar de um condomínio ou numa disputa sindical, nunca de um grupo de países emergentes sérios, liderados pela sexta economia do mundo..

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