Os porquês do Realismo Mágico

Na América Latina, só a magia e a paixão sustentam a vida. As histórias são o encantamento de que precisamos para esconjurar a morte

 

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Crônica de Nuno Ramos de Almeida | Imagem: Sebastião Salgado

Caminhávamos, José e eu, pelo Morro do Osso, em Porto Alegre. Ao longe via–se o Guaíba, esse rio com vários braços que parece vir dos confins das selvas. Os amigos chamavam-lhe Professor Pardal, o que muito o irritava. Mas o que se podia chamar a um habitante de uma favela que quase sem saber ler desenhava e montava circuitos integrados a partir do lixo? José equipava com as suas máquinas mágicas todas as rádios comunitárias da região. Reciclava os dejetos da cidade e transformava-os em objetos eletrônicos reluzentes. O seu sonho era dotar de voz hertziana todas as pessoas: “Ninguém deve ser espectador das suas notícias. No dia em que todos tenhamos palavras as coisas serão diferentes”, dizia-me “O nosso problema é sermos invisíveis. Só estamos presentes nas páginas de crimes dos jornais”, concluía, olhando para mim.

Há a ideia de que o realismo mágico latino americano é uma coisa adocicada, um artifício enganoso sobre a crua realidade das coisas. Nada de mais enganador. Na América Latina só a magia e a paixão sustentam a vida. As histórias são o encantamento de que precisamos para esconjurar a morte.

Quando lemos a descrição de García Márquez do massacre dos trabalhadores bananeiros ordenado pela United Fruit, sabemos que essas linhas fantásticas os resgatam do esquecimento e nos permitem escutar a respiração daqueles que caíram.

Não faltam anjos caídos por estas paragens. O escritor mexicano Paco Ignacio Taibo II convocou assim, num caderno, as centenas de estudantes massacrados na Praça das Três Culturas, na Cidade do México, em 1968: “Como se cozinhou a magia? Com o que se alimentava a fogueira? De onde saíram os 300 mil estudantes que chegaram a Zócalo no dia da manifestação do silêncio? […] qual foi o destino de Lurdes? Quem estava por detrás da porta de prepa no dia do tiroteio? Como fabrica uma geração os seus mitos? Qual era o menu diário da cantina de Ciência Política? […] Porque caiu Romeu por causa de uma minissaia? Onde deixaram os nossos mortos? Onde deixaram os nossos mortos? Em que sítio de merda deixaram os nossos mortos?”

Dizia Orson Welles, num conhecido monólogo do filme Terceiro Homem, que a Itália tinha tido guerras civis, massacres e inúmeros crimes, em compensação tinha produzido o Michelangelo, Leonardo da Vinci, Botticelli e outros nomes. A Suíça tinha tido cinco séculos de democracia e paz e tinha conseguido o relógio de cuco. “O problema da América Latina é estar muito perto dos Estados Unidos e muito longe de Deus”, como dizia o ditador Porfírio Diaz. É este excesso da matéria-prima de morte e paixão que cria a arte.

Tinha uma idade indeterminada, a cara estava escurecida pelo Sol. Encontrei-o às seis da manhã a cruzar San Vicente del Caguan. Perguntei aos guerrilheiros das FARC quem era o homem que marchava sozinho de megafone. “É a voz sonhada”, disse-me uma jovem guerrilheira. Todos os dias a voz percorria o povoado de alguns milhares de almas transmitindo as notícias do dia. Tínhamos feito quilómetros na selva com os combatentes das FARC. A pouca distância dali, as pessoas matavam–se numa guerra de pobres e de ricos começada há gerações: “a violência”, como lhe chamavam. Existências de mortos vivos com uma arma na mão. Nestas estradas de lama, um homem teimava em transmitir um pensamento pela palavra, convencido de que ela poderia abafar todo o ruído da metralha.

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