O “gato”, a mulher de Johnny e a bicicleta a motor (2)

Na segunda parte da crônica incomum de Boal, um duelo que não houve nas Ilhas Malvinas e uma “troca” tipicamente machista

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Por Augusto Boal | Imagem: George Wesley Bellows

MAIS: Seção especial celebra, em Outras Palavras, a exibição, no Rio de Janeiro (até 28/9), da peça Crônicas de Nuestra América, baseada no livro homônimo de Augusto Boal (com adaptação de Theotonio de Paiva, nosso colaborador). A seguir, a parte final da crônica.

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7

Uma das garrafas que John reservava para si mesmo, como mera experiência, não se sabe como, foi vendida ao “Her Majesty’s Pub”. E foi justamente nesse dia que os três bêbedos, Teddy, Terry e Freddy convenceram o “Gato” a descer de sua fiel bicicleta e tomar uns tragos em sua companhia.

Ultimamente, o “Gato” andava muito nervoso. Dizia-se que já não andava tanto pelos telhados e pelos terraços, como antes, e os bêbedos queriam saber a causa. Deram-lhe whisky da garrafa extraviada.

Que desastre!

Essa foi a experiência mais funesta jamais feita por um marinheiro real. Era uma fórmula complicadíssima, composta, em não pequena proporção, por um excitante chamado ”Dexamyl”, que só podia ser vendido sob estrita receita médica, além de outros ingredientes igualmente explosivos.

O “Gato” tomou a primeira dose e gostou. Pediu uma segunda e lhe pareceu melhor. Depois da terceira, resolveu que ia responder perguntas. Na verdade era sempre a mesma pergunta: quem sim, quem não?

“E Ofélia?”

“Essa sim, umas poucas vezes…”, respondia o “Gato”.

“E Mildred?”

“Oh! oh!… Mildred… pobrezinha, como não?… sim, sim…”

O “novo” whisky provocava a mais violenta euforia nos seus consumidores. E todos tomavam.

“E Hildegard?”

“Até que se casou. Depois, só umas poucas vezes. Como vivia no caminho… entre um teto e outro…”

“Fria demais, não gostei. Experimentei uma vez, para não parecer indelicado, mas foi suficiente…”

“E a minha mulher? E a minha mulher?”, perguntou angustiado o bêbedo Teddy.

Nesta altura, o “Gato” já estava na sua quarta ou quinta dose, e os seus companheiros já tinham perdido a conta das suas. O “Gato”, enternecido, contemplou Teddy e lhe disse docemente:

“Que bela senhora… que classe… que dignidade… Parabéns, cavalheiro. Sua senhora esposa foi uma das 10 ou 15 mulheres mais admiráveis de toda a minha vida sentimental. Uma das 20 ou 25, não resta dúvida… O senhor pode se considerar um homem feliz. Eu tive que deixar de frequentá-la devido a minha excessiva clientela, mas confesso que tenho saudades…”

Teddy sorria emocionado. O “Gato” continuou:

“Que ternura, que delicadeza de sentimentos… que pudor para expressar as suas mais autênticas emoções… Uma preciosidade, cavalheiro, uma verdadeira joia… O senhor não imagina o tesouro que tem em casa…”

Quando o “Gato” terminou de falar, o bêbedo Teddy tinha lágrimas nos olhos. Freddy e Terry se enterneceram. Como um eco, os dois amigos repetiam:

“Uma verdadeira joia… uma verdadeira joia…”

Aproveitando o silêncio, outros assistentes perguntavam:

“E a minha sobrinha?”

“E a minha filha?”

“E a mulher do padeiro…?”

Já o “Gato” estava tomando seu sétimo copo. Seus olhos fixos no chão. Não respondeu. Mas as perguntas continuavam chovendo.

“E a mamãe? E a mamãe?”, perguntou um jovem.

O “Gato” levantou os olhos, olhou a todos furioso e se transformou em uma fera bravia, um tigre, um jaguar, uma pantera negra! Todos se assustaram e ficaram todos olhando para ele, cheios de pavor. O “Gato” rugiu como um leão:

“E eu? E eu?? E eu???”

Ninguém compreendeu nada, mas todos se afastaram pelas dúvidas. O bêbedo Teddy, esposo da senhora pudica, cambaleou e no chão, murmurando o nome de sua amada: “Regina. Regina, minha querida Regina…”, enquanto que o “Gato” continuava com os seus gritos:

“E a mim, ninguém me pergunta como eu me sinto? Ninguém quer saber a quem eu verdadeiramente amo? Quem sou eu para vocês? Um miserável gato que anda saltando nos tetos dos vizinhos? Não sou nada mais do que isso???”

Ninguém sabia o que responder, pois a verdade é que todos pensavam isso mesmo: o “Gato” era um gato que não miava e que deslizava suavemente em cima dos telhados e entre os lençóis.

Tomando seu oitavo copo (ou melhor: atirando o conteúdo em cima do próprio rosto!) o “Gato” começou a soluçar:

“Eu sou um homem! Eu também tenho sentimentos profundos, como todo mundo”.

E, para admiração dos estarrecidos presentes, acrescentou:

“O sexo não é tudo. Não senhores, o sexo não é a parte mais importante do homem. Vocês são uns bêbedos ignorantes que não pensam noutra coisa, mas existe outra coisa.”

Ninguém podia crer no que ouvia.

“O amor!”

Falou com tanta emoção (e o álcool misturado com o Dexamyl, iodo, mertiolate e outras drogas, aumentava ainda mais essa emoção, que ninguém foi capaz de rir. Todos escutaram com respeito. O marido bêbedo da senhora digna se aproximou e perguntou:

“Quer dizer que o senhor está apaixonado? Pode-se perguntar por acaso quem é a feliz dama? Por casualidade, digo eu, por casualidade não estará o senhor apaixonado pela minha mulher?”

O “Gato” já nem conseguia abrir os olhos.

“Não, não é pela sua mulher, pode ficar tranquilo…”

“Tranquilo estou… seria uma honra… uma verdadeira honra…

E, diante do espanto geral, o “Gato” se denunciou:

“Eu estou apaixonado por Dorothy!” gritou. “Dorothy! Dorothy! Eu te amo! Dorothy, l love you! I love you!”

E cada vez gritava mais, e sentiu uma terrível fúria sem dúvida produzida pela mistura Amor-Dexamyl (que pode ser mortal, às vezes) e tirou do bolso uma enorme quantidade de papeis amassados. O bêbedo não parava de aconselhá-lo:

“E por que motivo estranho não se declara? Declare-se! O amor sincero é uma emoção muito digna…”

“Eu já me declarei uma centena de vezes! Mas ela não gosta de mim, não me responde e devolve as minhas cartas. Eu tenho um amigo que é poeta. Olhem aqui as coisas que ele me ensinou a escrever…”

Olhava os papeis, mas os seus olhos já não conseguiam ler. Como tinha decorado tudo, declamava frases como estas: “Tu és a estrela solitária no firmamento das Malvinas!” ou “A lua cheia, que tanto brilha, não brilha tanto quanto teu olhar!” Informou aos espectadores (já todos se tinham instalado comodamente em suas cadeiras e, naturalmente, continuavam bebendo enquanto escutavam) que sua amada Dorothy não se dignava responder-lhe: simplesmente jogava seus versos na lata de lixo. Como um gato, furtivamente, ia o “Gato” de noite remexer o lixo e resgatar os versos sujos de espinha de peixe e pernas de frango.

Pobre ”Gato”: tudo que ocultara durante anos até mesmo ao seu próprio confessor (era anglicano) revelava-se aí agora, na taberna, diante de todos que quisessem ouvi-lo. Todos, menos o marido de sua amada: quando se revelou o segredo, imediatamente o patrão de John Sutherland se dirigiu ao “Laboratório” para reter aí o seu empregado, certo de que ele seria capaz de lavar em sangue sua honra ultrajada.

O “Gato” não se continha. Afirmou que mudaria de tática: se antes sua arma havia sido o silêncio, seria agora o barulho! Afirmação da qual se aproveitou um dos presentes para oferecer-Ihe a venda de um motor de bicicleta. O “Gato” olhou-o fascinado:

“Um motor??? Ái, ái, quero sim…”, e começou a imitar com a boca o ruído de um possante motor.

O vendedor, homem honesto, esclareceu:

“É um motor de bicicleta, não é de Fórmula 1…” O “Gato” realizou a compra ali mesmo e o vendedor instalou o motor em poucos minutos, durante os quais o “Gato” não parou de imitar o ruído de uma possante máquina fazendo perigosas curvas embaixo da janela de sua amada:

“Yayayauyauyauyauyauyauyauyauyau…”

Terminada a instalação, o “Gato” montou em sua bicicleta (que parecia aborrecida), apertou o acelerador e disparou em direção à janela amada. Durante essa noite deu voltas e voltas, e gritou e gritou, e tanto e tanto até que desmaiou. Tudo isso debaixo da janela fechada, da janela silenciosa, da janela indiferente. Aí passou a noite o “Gato” e, devo dizer, a bem da verdade, aí vomitou toda a noite.

8

Assim são as coisas: tudo termina por se saber. Não se sabe como, todo mundo termina sabendo tudo. E John Sutherland não seria uma exceção. Não foi o primeiro, mas igualmente também não foi o último em descobrir que o ”Gato” estava apaixonado pela sua esposa. Em casa, comunicou a Dorothy a sua descoberta. Ela, assustada, protestou inocência. Johnny sorriu:

“Sei, sei, eu já sei…”

“Nada do meu passado”, insistia Dorothy, a que se queria chamar Dolores, mas que jamais recebeu resposta da Rainha da Inglaterra.

“Nada!” concordava Johnny. “Mas esse rapaz é bem bonito, não é mesmo?”

A pergunta ficou no ar, sem resposta. A quem podia interessar saber se era bonito ou não? A pergunta ficou no ar…

9

Durante uma semana inteira não se ouviu falar no “Gato”, que não foi visto em nenhum lugar. Desapareceu por completo. Chegou-se a afirmar que tinha viajado para Buenos Aires, num dos muitos navios pesqueiros que ali aportavam. Mas ninguém sabia com certeza. Outros diziam que estava em sua casa vomitando, mas ninguém ia ver. Sua casa continuava fechada. John Sutherland, ao contrário, começou a frequentar a praça. Ia todas as tardes e ficava ali sozinho, como se estivesse esperando alguém que não comparecia ao encontro. Todos os dias, à tarde, até as seis horas. Às seis ia embora.

Um dia, às sete, apareceu o “Gato”. Os bêbedos Freddy, Teddy e Terry, excitadíssimos, vieram falar com ele:

“Johnny todos os dias te espera. Te espera até as seis. Ele quer te matar. O melhor é você fugir daqui. Vai para Buenos Aires.

Pode ser que lá você consiga emprego. Existem muitas mulheres em Buenos Aires… elas não vão resistir à tua bicicleta… e muito menos agora, que tem um motor…”

Mas o “Gato” era decididamente um islenho, e Buenos Aires não exercia sobre ele a menor atração. Por mais que lhe falassem de bifes de “chorizo”, “chinchulines” e ”morcillas”, carnes e peixes, o “Gato” permanecia indiferente. Decidiu que ficaria e enfrentaria a morte, se necessário. Mandou um recado a Johnny: viria à praça todas as tardes, às sete. Se Johnny quisesse falar com ele, que viesse.

John recebeu o recado no dia seguinte. Escutou gravemente e, depois, sentenciou:

“Nós nos encontraremos na terra de ninguém: será às seis e meia. Que venha mais cedo amanhã e eu ficarei até mais tarde. Às seis e meia nos encontraremos aqui na praça. E seja o que Deus quiser…”

Meu Deus do céu: nem sei como contar a balbúrdia infernal. Tamanho bulício nunca se viu, tanto barulho e diz-que-disse. Ninguém tomou uma só gota de álcool, e ninguém fez mais do que preparar um lugarzinho na praça para poder assistir, ainda que fosse de longe, ao mais famoso encontro de Port Stanley.

Onde se encontrariam? Os três bêbedos que, nesse dia, estavam sóbrios, decidiram que não podia ser nem na “La Discothéque de Margaret” nem na “Her Majesty’s Pub”, para não defraudar nem uns nem outros. Decidiram que colocariam uma mesa no centro da praça com duas cadeiras, uma garrafa de whisky e dois copos, para as conversações preliminares, e o duelo seria aonde o decidissem os contendores. Pensaram na possibilidade de cobrar entrada, mas logo perceberam que não seria possível: de suas janelas, uma quantidade apreciável de gente poderia seguir os lances da emocionante refrega sem necessidade de pagar.

Bem, então o espetáculo seria grátis. Mas todos queriam reservar para si o melhor lugar, a melhor posição. Dois casais que possuíam binóculos foram obrigados a ficar o mais longe possível. E desde as quatro da tarde começaram a chegar os espectadores. Nesse dia o Governador decretou “ponto facultativo” e a praça se encheu.

Pode-se dizer que veio toda a população válida da ilha: velhos e jovens, homens e mulheres. Levantaram-se pequenas barracas para a venda de doces e salsichas, refrescos e refrigerantes e para vender também algumas bandeirinhas e escudos que não tinham nada que ver com o encontro, mas que tinham sobrado das últimas festas pátrias e religiosas. Gente ia chegando e se amontoando na praça, ia se apertando, até que Freddy, Teddy e Terry, os verdadeiros promotores da festa, perceberam que não haveria lugar para os contrincantes. Que fazer? Ninguém queria perder seu lugar.

Port Stanley é um pequeno povoado. Aí quase não ocorrem crimes: um pequeno roubo, uma infração de trânsito, um bêbedo que diz algum disparate à mulher de um acaudalado comerciante etc. Nada mais. A prisão está quase sempre vazia e os presos, quando existem, têm autorização de ir dormir em suas próprias casas. Neste caso, tiveram autorização de ir à praça.

Teddy, Freddy e Terry decidiram solicitar a colaboração policial. A Força Pública se compõe de sete policiais, desarmados, à maneira britânica. Vieram os sete e imediatamente tomaram as medidas necessárias à manutenção da ordem, colocando em lugares especiais as mulheres grávidas, as crianças e os anciãos; em lugar de destaque, as personalidades da ilha e outras autoridades. Finalmente a multidão. Deixaram um grande espaço no centro, para que os adversários se pudessem mover e bater livremente. Isso naturalmente distanciava os espectadores que podiam ver tudo muito bem, mas que só poderiam ouvir alguma coisa se os contrincantes falassem muito alto, como aconteceria, ao que tudo indicava.

Eram cinco da tarde e a praça já estava repleta, os vendedores já tinham vendido toda sua mercadoria, as crianças choravam, uns velhos impertinentes reclamavam o atraso (sem razão!), ouviam-se ruídos de todo tipo, um velho capitão reformado tocava numa trombeta velhas marchas militares da primeira guerra mundial, os três bêbedos faziam todo o possível para acomodar todo mundo, e para solucionar os pequenos problemas e incomodidades.

Às seis, a impaciência cedeu lugar à ansiedade, ante a proximidade do fato consumado: haveria mortes? não seria melhor evitar o encontro enquanto era tempo? quem seria o responsável pelo que pudesse ocorrer, diante de tantas testemunhas? e ser testemunha, neste caso, não seria também um crime? não estavam os policiais, o Juiz e outras autoridades coniventes com esta reedição do circo romano?

Às seis e vinte houve dois desmaios de senhoras simpatizantes do “Gato”. Às seis e meia em ponto apareceu na praça Mr. John Sutherland. Compreendeu tudo. Olhou a sua volta com um certo desprezo. As mocinhas e as mulheres expressavam em seus rostos uma mistura de ódio e de pedido de piedade e clemência. Algumas começaram a rezar compridos rosários. O silêncio cada vez mais profundo, que se iniciara com a entrada de Johnny na praça, apenas permitia que se ouvissem vozes surdas clamando aos céus: “Ave Maria, cheia de graça…”, “Padre Nosso, perdoai as nossas dívidas…”, “Salve Rainha, Mãe da Misericórdia…”

John Sutherland sentou-se numa cadeira. Teddy, Freddy e Terry vieram correndo trazer-lhe uma garrafa de whisky:

“E um presente do senhor Juiz…”

Johnny viu que de longe o Juiz lhe acenava com a cabeça, sorrindo. Johnny respondeu, inclinando a sua, e, depois de tomar um trago, com as mãos postas, ficou olhando o céu.

“Que estará fazendo?”, perguntou Tia Clorinda.

“Está rogando a Deus que lhe dê forças, porque ele quer matar o nosso “Gato”… , chorou uma jovem.

“Mais força têm nossas orações…”, gemeu uma senhora de generosos peitos. “Rezemos todas juntas”.

“Rezem sim, mas pensando em Deus e não em certas coisinhas…”, advertiu Tia Clorinda.

“Que coisinhas?”, perguntou indignada a dos seios.

“Nós todos sabemos muito bem…”, coqueteou a Tia.

Eram seis e trinta e cinco e o silêncio era tão grande que mal se ouviam os choros e as orações femininas. Então, no meio do silêncio, ao longe ladrou um cachorro e se escutou o ruído de um motor de bicicleta. Quatro ou cinco mulheres desmaiaram. Uma sofreu um ataque mais sério e teve que ser conduzida às pressas para dentro de “La Discothéque de Margaret” para os primeiros auxílios que ninguém quis ministrar: os dois homens que a levaram voltaram em seguida para presenciar o sangrento encontro.

10

O “Gato”, montado em sua orgulhosa bicicleta, abria alas no meio da multidão, mais formoso do que nunca. O motor da bicicleta ronronava baixinho, respondendo à sensual pressão da mão carinhosa do ”Gato” no acelerador. A bicicleta deu uma volta completa em toda a praça, olimpicamente saudando o público presente, duas voltas e na terceira o motor parou e a bicicleta se aproximou lentamente, como se estivesse planando no céu, até parar diante da mesa onde Mr. John Sutherland tomava seu terceiro copo de “Royal Salute”.

Mansamente, a bicicleta se deteve. Os espectadores quase nem respiravam. Viram quando o “Gato” desmontou, viram como tratava sua bicicleta tão amorosamente e com tanto carinho que muito poucas mulheres poderão dizer o mesmo de seus maridos.

A bicicleta ficou de pé, com a roda dianteira levemente inclinada em direção à mesa, como se estivesse escutando, atenta, tudo o que diziam: as flores e as fitas coloridas brilhavam orgulhosas; os metais, como joias, feriam os olhos de quem os olhava. O “Gato” acariciou sua bicicleta, como para acalmá-la, como se lhe dissesse:

“Não vai acontecer nada.”

E se aproximou da mesa. Tensão. Os olhos de John Sutherland só então se levantaram e os dois inimigos mortais, inimigos jurados, por primeira vez se olharam, frente a frente, olho no olho. Como cavalheiros, deram-se a mão direita e Johnny o convidou a sentar-se, em silêncio, com um gesto pudico. Em seguida, encheu os copos e os dois beberam.

Houve uma longa pausa.

Outra vez os dois se olharam, mas nenhum parecia disposto a iniciar o diálogo. Como iniciá-lo?

“Eu penso que nós temos coisas para contar, um ao outro…”, começou o “Gato”.

“É verdade”, concordou Johnny. “Eu sei que já não posso ocultá-lo por mais tempo…”

“Como?!” perguntou o “Gato” surpreendido, sem compreendê-lo. “O que é que não me pode ocultar???”

11

John Sutherland tossiu gravemente e começou a falar, olhando de frente aqueles olhos azuis, cara a cara, como um homem honrado que tem que cumprir uma tarefa terrível, mas que a cumpre com toda a honestidade.

“Sim, senhor “Gato”, esta é a verdade. Verdade terrível, mas verdade verdadeira. Eu confesso que estou apaixonado pela sua bicicleta…”

Os dois homens se olharam olho a olho, cara a cara, frente a frente. As centenas de espectadores olharam fixamente os dois homens que se olhavam, mas não escutavam uma só palavra do que diziam e não conseguiam entender o que se passava. Uns arriscavam uma opinião:

“Estão decidindo se será com espada ou pistola…”

“Estão decidindo que o duelo será à morte”, sentenciou o Juiz. “Um dos dois não sairá daqui vivo…”

O “Gato” sentiu que era a sua vez, que devia dizer alguma coisa.

“Eu também… da minha parte… eu confesso que estou apaixonado pela sua mulher…”

“Sei, sei, eu já sabia…”, murmurou Johnny olhando fascinado para a bicicleta. “Essas florezinhas, essas fitinhas de todas as cores… Olha só pra ela… E ainda mais agora, que tem esse motor… quem é que pode resistir…?”

“Dorothy teu nome é Dolores”, miou o “Gato”.

John, inquieto, agarrou-lhe a mão:

“Meu amigo, eu quero lhe fazer uma proposta honrada. Eu amo a sua bicicleta e o senhor ama a minha senhora esposa. Vamos fazer uma troca. Eu vou embora das Malvinas, vou para o continente. Tenho que dispor de todas as minhas ”coisas”. Já vendi minha geladeira, minhas cadeiras, a mesa de jantar… quase tudo. Com a minha senhora esposa, que não está à venda, posso fazer uma troca! Ela não gosta da ideia de ir viver em Buenos Aires, prefere ficar por aqui. Além disso, lá, ela me seria muito pouco útil. Mas numa cidade grande, a sua bicicleta a motor, ao contrário, pode-me ser de grande utilidade…”

O “Gato” não podia acreditar no que ouvia.

“Mas… e a sua senhora esposa, a minha Dolores… estará de acordo…?”

“Ela fará tudo que eu quiser… E além disso, faz agora uma semana que eu lhe perguntei se achava o senhor bonito e… bem, ela não respondeu nada… mas fez um silêncio muito suspeito… por alguma coisa será…”

“Yúpi!” gritou o “Gato” saltando no ar. “Uúúúúúúúúúpi!!!”

Os espectadores que já não entendiam nada entenderam um pouco menos quando viram o “Gato” saltar como um bambi, gritando o nome da sua amada. E cada vez mais aumentavam a confusão e o desconcerto, e ninguém pôde acreditar no que os seus olhos viam quando viram (todos viram!) que o “Gato” aplicava um terrível pontapé na sua bicicleta! (Ai, assim são os homens, esses ingratos…) E viram depois que John Sutherland saltava sobre a bicicleta, limpava-a cheio de ternura e amor.

Depois viram que Johnny a montava (Meu Deus, que temeridade!) e montado saiu pedalando pela rua principal, em direção ao porto, enquanto que o motor produzia um barulho igualzinho ao choro convulso de uma mulher desesperada.

A algaravia foi indescritível, parecia uma explosão: gente saltando uns sobre os outros, gente correndo enlouquecida em todas as direções. Várias pessoas foram atropeladas, muitas pisoteadas. Que estaria acontecendo? Que estranhos sucessos! A realidade era tão mais rápida do que a imaginação que ninguém conseguia sequer começar um rumor, imaginar uma hipótese.

Alguns acompanharam o “Gato” correndo e viram de longe como ele dava socos na porta de John Sutherland. De longe viram quando Dorothy abriu a porta. Viram o que teria sido uma breve explicação e viram quando se abraçaram com violência.

Viram quando se fechou a porta e nada mais viram. Chegaram perto e ouviram. Ouviram gritos e risos, e outros barulhos, alguns identificáveis, outros não. Durante toda a noite, assim foi.

12

Teddy, Terry e Freddy foram atrás de Johnny a quem encontraram no porto, perto de um navio pesqueiro que se preparava para zarpar. A conversa, no começo, foi difícil. Mas John Sutherland acabou explicando tudo: ia embora e queria dispor das suas “coisas”. Estava no seu direito – assim pensava. Ele não ia deixar-se enganar. isso nunca! Bobo não era! Por isso, a troca lhe parecia justa e oportuna: tanto Dorothy como a bicicleta podiam ser úteis aos seus novos companheiros, ou donos.

“Moral é moral…”, protestavam os três bêbedos sóbrios.

“E os negócios são os negócios…”, contra-argumentava Johnny.

Mas mesmo no campo dos negócios os três não estavam de acordo e não acreditavam que Johnny tivesse feito um bom negócio.

Que razões teriam? Primeira: porque o motor era de segunda mão e havia bastado um pontapé para deixar de funcionar. Segunda, porque uma mulher vale muito mais do que uma bicicleta…

“Depende”, explicava pacientemente Johnny, ”depende”. Aqui nestas ilhas pode ser que sim, porque isto aqui é o fim do mundo. Uma mulher vale muito porque existem poucas. Mas eu estou indo pra uma cidade grande, e em Buenos Aires existem muitíssimas mulheres, por isso a troca me convém…”

“Não senhor!”, negou Freddy. “O “Gato” te enganou! Você foi enganado como um bobo…”

“Por que?”, perguntou Johnny assustado.

“Porque você devia ter pedido muito mais pela sua mulher.

“Uma bicicleta só é muito pouco. O “Gato” te enganou e não tem remédio…”, dizia Freddy.

Johnny insistia em que não via o engano.

“Olha aqui: aqui nas Malvinas existem seis homens para cada mulher. Mas também existem duas bicicletas para cada homem.

Por isso, na pior das hipóteses, e a matemática não falha, uma mulher vale pelo menos 12 bicicletas!”

Mr. John Sutherland, o que não se queria deixar enganar, estava lívido! Em silêncio, agarrou uma caneta e começou a fazer as contas. Os três bêbados olhavam para ele, com certa pena.

13

Com lágrimas nos olhos, Johnny gemeu:

“É verdade, você tem razão. A matemática demonstra que uma mulher vale exatamente doze bicicletas. Matematicamente certo! Portanto, eu fui roubado em onze bicicletas! Tenho a ilha inteira por testemunha. Esse “Gato” desgraçado me deve onze bicicletas…”

E chorava copiosamente. Os três bêbedos estavam aborrecidos com Johnny e foram embora sem se despedirem. Johnny ficou sozinho no porto, bebendo e chorando, esperando a partida do navio pesqueiro. Já era noite fechada quando resolveu não embarcar e voltar à praça. Estava terrivelmente envergonhado. O navio partiu e Johnny pedalou a sua única bicicleta, de flores amassadas e motor parado.

14

Nessa noite, todas as tabernas ficaram abertas até mais tarde. Johnny entrou na “La Discothéque de Margaret” e tomou um trago. Os outros clientes nem olhavam para o lado dele. Estavam todos com muita raiva. Sentiam-se defraudados. Durante horas haviam-se preparado para assistir a uma luta de morte e acabaram não vendo nada mais do que uma troca comercial. Todos se sentiam roubados em suas expectativas e, além disso, não aprovavam a troca.

Sozinho, em sua mesa, John Sutherland ficou bebendo até a meia noite. Pagou e foi pedalando lentamente em direção à sua antiga casa. Não tinha coragem, mas sentia que era seu dever pedir explicações, desfazer os malentendidos. Decidido, continuava pedalando e maldizendo o motor, que não cooperava. Quando ia passando, as janelas se fechavam com barulho e se ouviam vozes enfurecidas.

John Sutherland parou diante de sua antiga casa. Ouviu gritos e risos, e outros ruídos. As luzes estavam acesas. Os ruídos pareciam ser de gente que corre e se joga em cima da cama. Johnny tocou a campainha. Houve um silêncio. As luzes se apagaram. Ouviram-se passos. Certamente era Dorothy que descia as escadas. O coração de Johnny bateu com força. A porta se entreabriu. Dorothy estava completamente despenteada, mal vestida, os peitos saltando, contentes, nervosos buliçosos.

Os dois se olharam. Secamente, Dorothy perguntou:

“O senhor, que deseja?”

Mr. John Sutherland olhou-a com lágrimas nos olhos. Não teve coragem de dizer que a desejava de volta. Dorothy fechou a porta. John Sutherland voltou à ”Discothéque”.

Na taberna, ficou chorando.

Ilhas Malvinas – Argentina

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Um comentario para "O “gato”, a mulher de Johnny e a bicicleta a motor (2)"

  1. Paulo Piza disse:

    Colocar as Malvinas como cenário desta crônica foi coisa de mestre(1 e 2).Me lembrou “Gabo” e sua Macondo!

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