O fantasma do autoritarismo latino-americano

Para os grupos dominantes da região (incluindo seus parceiros no exterior), a democracia parece ser mera conveniência e artifício retórico

.

Por Felipe Amin Filomeno | Imagem: Jogadores de Cartas, de Fernando Botero 

O processo de impeachment contra Presidente Fernando Lugo do Paraguai foi a mais recente aparição de um fantasma que assombra a América Latina desde sua colonização: o autoritarismo. Como ao longo da história, este fantasma tem como seus hospedeiros preferidos os partidos de direita, as elites econômicas, a classe média conservadora, e a grande mídia.

No início do século XIX, o fantasma autoritário sobreviveu a independência política latino-americana, quando governos coloniais foram substituídos por repúblicas oligárquicas (e uma monarquia, no caso do Brasil). Em meados do século XX, governos populistas-trabalhistas, como o de Getúlio Vargas no Brasil e o de Juan Perón na Argentina, tiveram uma relação ambígua com a democracia. Perón, por exemplo, podia ser autoritário, mas estendeu o direito de voto às mulheres e representava melhor as classes populares do que a oligarquia rural que antes dele governava a Argentina.

Esta ambiguidade foi depois substituída por uma quase completa supressão da democracia, quando os governos populistas-trabalhistas foram removidos por ditaduras militares conservadoras. Foi o caso, por exemplo, dos golpes militares contra João Goulart no Brasil, Salvador Allende no Chile, e Isabel Perón na Argentina. Diante de tais golpes, os Estados Unidos, como potência hemisférica e mundial, tiveram uma atuação que oscilou entre a conivência e o apoio direto.

A redemocratização ocorreu apenas nos anos 1980 e 1990, mas, mesmo nesta década, enfrentou ameaças iniciadas por governos neoliberais. No Brasil, por exemplo, lembremos das denúncias de compra de votos de parlamentares para aprovar a emenda constitucional da reeleição ou mesmo do abuso de medidas provisórias, através do qual o Presidente absorvia funções do Congresso Nacional – ambos ocorridos nas gestões democraticamente eleitas de Fernando Henrique Cardoso. Na Argentina de Menem e no Peru de Fujimori, podemos encontrar exemplos equivalentes.

A última onda de aparições do fantasma do autoritarismo emergiu após a eleição de governos de esquerda na América Latina, no início dos anos 2000. Não, não me refiro ao comportamento supostamente anti-democrático de líderes como Hugo Chávez na Venezuela, acusado de proto-ditador pela mídia conservadora e seus ouvintes beneficiários (elites econômicas) ou iludidos (classe média conservadora). Refiro-me sim às recentes tentativas (algumas efetivas) de golpes contra presidentes reformistas ou revolucionários que têm adotado políticas de redistribuição de riqueza e maior assertividade no cenário internacional.

Na Venezuela, Chávez foi removido temporariamente do poder em 2002, num golpe militar que contou com o apoio dos grandes grupos empresariais (Fedecámaras) e midiáticos. Na época, o governo dos Estados Unidos, embora negue apoio ao golpe em si, financiava organizações políticas que se opunham ao governo eleito de Chávez. Na Bolívia, em 2008, em meio a uma crise política associada a um processo constituinte, o presidente Evo Morales teve de se submeter a um referendo que decidiria se ele permaneceria ou não no poder. Morales teve seu mandato ratificado por mais de 67% dos votos válidos. Em 2009, o presidente de Honduras Manuel Zelaya foi destituído do cargo através de ação militar respaldada pelo Parlamento e pela Suprema Corte do país, numa transição que foi classificada como golpe de Estado pela comunidade internacional. Em 2010, foi a vez de Rafael Correa, presidente do Equador, que teve de superar uma revolta policial que pretendia destituí-lo do poder e, alegadamente, assassiná-lo. Agora, foi a vez do Paraguai. O mesmo Congresso Nacional que tem bloqueado a adesão da Venezuela como membro integral do Mercosul, acusando este país de não ser democrático, promoveu com o impeachment um golpe parlamentar disfarçado de julgamento, sem motivos razoáveis e sem respeito a direitos constitucionais. Atrás do golpe, a disputa entre uma oligarquia agrária e movimentos camponeses pela principal riqueza do país: a terra.

No Brasil, hoje, a possibilidade de um golpe de Estado é remota. Entre as razões para isto, estão o reformismo dos governos do Partido dos Trabalhadores (em contrário a um governo radical-revolucionário) e a maior solidez das instituições democráticas nacionais. Contribuem, também, as instituições regionais da América Latina, como a Unasul, que hoje atua na defesa da democracia paraguaia. Porém, mesmo no Brasil, há uma democracia que precisa ser estendida para mais além de seu aspecto formal e uma grande mídia que, infelizmente, é merecedora do cada vez mais popular adjetivo “PIG” – Partido da Imprensa Golpista.

Enfim, não é que a esquerda não possa ser autoritária (veja Fidel Castro), mas sim que, para os grupos dominantes da América Latina (incluindo seus parceiros no exterior), a democracia é mera conveniência e artifício retórico. Quando o presidente eleito é de direita, os grupos dominantes defendem a democracia de fato e em princípio. Quando o presidente eleito é de esquerda, os grupos dominantes defendem a democracia em princípio, mas apóiam de fato os golpes de Estado. O resultado são ciclos de autoritarismo e democracia na América Latina, associados às contradições de seu subdesenvolvimento e à posição subordinada que ocupa no sistema internacional.

*Felipe Amin Filomeno é doutor em Sociologia pela Universidade John Hopkins (EUA). Mantem um blog de atualização constante.

> Edições anteriores da coluna:

Câncer, medalha e conservadorismo

A doença de Lula e a homenagem a Ronaldinho na Academia Brasileira de Letras despertaram a miséria intelectual da sociedade

Uma nova cooperação para o desenvolvimento

A ascensão dos BRICS abala hierarquias globais seculares. Mas para que prossiga, é preciso nova coordenação entre países do Sul

O sentido politico da “faxina” de Dilma

Ao agir de modo aberto contra corrupção, presidente pode deixar direita sem discurso. Mas até onde ela levará sua ofensiva?

Pão de Açúcar, amargo sabor

Fracasso da fusão com Carrefour, estimulada pelo BNDES, convida a refletir sobre papel do Estado na formação dos monopólios

Brasil Sem Miséria: desafios e contradições

Novo programa reduz desigualdade e relembra: renda não depende apenas de trabalho. Mas para sustentá-lo será preciso rever políticas econômicas

Brasil e Mercosul começam a defender suas terras

Estrangeiros (especialmente chineses) fazem aquisições maciças. Processo afeta agricultura familiar, biodiversidade e segurança alimentar. Mas há alternativas

De frente para a América Latina

Cresce interesse por contribuições inovadoras da região e do Brasil. Mas em nossas universidades, muitos ainda se aferram ao eurocentrismo…

Yes, nós temos bananas

Riqueza natural do Brasil não é, necessariamente, maldição. Mas país precisa formular políticas claras, para convertê-la em desenvolvimento para todos

Leia Também:

3 comentários para "O fantasma do autoritarismo latino-americano"

  1. Só faltou o crédito the imagem.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *