Especial: as FARC após a guerra

Visita a um acampamento de ex-guerrilheiros. Enquanto cobram cumprimento dos acordos, eles divertem-se, reencontram parentes e tramam uma “Nova Colômbia”

Antes da paz: duas guerrilheiras sorriem, num acampamento das FARC. A direita, a holandesa Tanja Nijmeijer, que combateu por 15 anos e teve papel importante nas negociações que acabaram com a guerra

Antes da paz: duas guerrilheiras sorriem, num acampamento das FARC. A direita, a holandesa Tanja Nijmeijer, que combateu por 15 anos e teve papel importante nas negociações que encerraram a guerra

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Visita a um acampamento de ex-guerrilheiros. Enquanto cobram cumprimento dos acordos com governo, eles divertem-se, reencontram parentes e tramam uma “Nova Colômbia”, a ser construída também em projetos de Economia Solidária

Reportagem de Sebastián Ronderos

Encontrei o Julian há algumas semanas, membro do comando da Zona Veredal (ZV) Mariana Páez – área de concentração das FARC –, para discutir a situação vivida nos territórios de normalização, possíveis planos de ação conjunta e ultimar detalhes para o desenvolvimento de uma brigada médica.

Fomos num café em uma sexta-feira, ao redor das 7 da tarde. A saudação foi emotiva: “e aí, companheiro!” – exclamou, seguido de um abraço. Reconheci nele uma expressão de inquietação pelo barulho e tumulto ao nosso redor. Procuramos um canto sereno ao fundo e pedimos uma cerveja. “Julian, como foi a chegada?”, – perguntei. “Bogotá é um monstro, meu amigo, não é fácil me acostumar”, – respondeu, sorrindo.

Em seguida, explicou os desafios enfrentados na área: falta água potável e unidades sanitárias. Começam as complicações de saúde, ameaçando principalmente mulheres grávidas e crianças. Lembrou também que até aquele dia haviam sido assassinados 17 ex-guerrilheiros em outras ZV.

Pergunto: “como está a moral no acampamento?” Agacha a cabeça. “Piorando, irmão. O governo não está cumprindo com sua parte. Mas aqui estamos, firmes com a nossa” –responde enfático. Durante a conversa, Julian mostrou uma profunda preocupação com sua gente, mesmo com organização, atento ao próximo congresso das FARC que, naqueles dias, iria acontecer na capital, com os objetivos de definir novas orientações táticas e constituir-se como partido político. Pontuamos uma série de questões a trabalhar na visita e definimos os esquemas logísticos. Finalizamos a cerveja. Abraço e despedida.

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Território e Assentamentos

Na tarde de sexta-feira, 15 de setembro, iniciamos nosso caminho para Granada, Departamento de Meta, cerca de 80 km da cidade de Villavicencio, no centro do país Entramos em uma região extremamente ativa no conflito armado, pois, enquanto a cidade de Granada era de presença paramilitar, Mesetas tem sido de influencia farquiana (membros das FARC). Apenas 42 km as separam. Não longe dai fica A Uribe, conhecida por ser o lugar onde Cesar Gaviria bombardeou o acampamento Casa Verde, no final da década de 90, episódio que marcou o fim do cessar fogo e das negociações entre o governo e a guerrilha daquele período.

Sábado (16/9), às 6 da manhã, vamos para Mesetas. Saímos com pouco tempo, pois os farquianos já nos esperavam com o café da manhã pronto. No parque central, Martha, a quem conheci no encontro com Julian, nos aguardava em uns 4×4 de carroceria Gaz e motor Chevrolet para nos dar acesso à área. “Vamos, que uma boa trilha nos espera!”, – exclamou.

Via Uribe, nós desviamos pelo rio El Cafre, entrando em um inclemente caminho de terra que atravessa uma extensa e inóspita planície. “Aqui quando chove só estas máquinas conseguem chegar” – escutamos entre os ruídos de oscilação do chassi. Mais ou menos a 40 minutos, uma blitz interrompe o caminho, em decorrência do processo de desativação de minas. Os guerrilheiros caminhavam por essas estradas, dormiam por essas montanhas e cuidavam da área. Como nela mantinham uma presença reiterada, as minas de explosão pareciam atípicas. Pelo menos suspeitas. “Para mim isto foi feito pelo exército, não podemos esquecer que eles também minaram” – afirma Martha.

Chegando ao acampamento, um sorridente e enérgico Julian nos recebe. “Vá para a sala central, estamos servindo café da manhã”: chocolate, café e uma sopa de batata e ovo. “Aqui fazemos rotação da ranchada (gíria local para se referir à cozinha) e vocês tiveram sorte. Pegaram um camarada com bom tempero”, – disse um jovem, gerando gargalhadas na cozinha.

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O acampamento organiza-se em um semi-círculo de barracas de plástico, piso de terra e áreas comuns, as mesmas estruturas provisórias que tiveram desde o início do ano. Conforme o acordado, o governo devia recebê-los em fevereiro com as instalações permanentes e habitáveis. Em junho, entregaram algumas placas de cimento e sentiram-se com o dever cumprido. Foram os ex-guerilheros que se encarregaram de levantar, pouco a pouco, as instalações. Pergunto: “Onde estão as privadas?”, – me dão um olhar zombador. “Os Chontos?, lá atrás desses arbustos”. Abre buraco, fecha buraco.

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Lá foram habitar guerrilheiros de diferentes frentes, a maioria procurando estar perto das suas famílias, que muitos não veem há uns 20 ou 30 anos. A maioria ainda sem saber se estão com vida. Comentam, contudo, que o “acampamento 1” está mais estruturado. Segundo a lei de anistia, os prisioneiros políticos foram submetidos a um regime especial de restrição de liberdade, concentrados em centros de detenção provisória enquanto submetem-se à Jurisdição Especial de Paz. O governo recusou-se em transladar os prisioneiros até que os campos fossem concluídos, mas sem intenção visível de querer dar inicio as obras. Os farquianos mobilizaram-se. Disponibilizaram o “acampamento 1” – agora chamado Simon Trinidad – único acampamento pronto, para receber os seus camaradas. Só a 800 metros de onde estávamos. Iríamos visitá-los no dia seguinte.

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Tática e Estratégia, Estrutura e Organização

Julian me apresenta a Yolima, uma jovem farquiana que chegou ao acampamento há pouco mais de um mês e, desde então, tornou-se responsável pelas comunicações. Contou-me que, durante a guerra, os comandantes cuidaram dela e queriam torná-la uma revolucionária exemplar. Nem por isso passou imune aos bombardeios e estilhaços. Yolima mostrou-se uma mulher de boa formação, sensível e bem-humorada. Uma liderança sempre atenta às tarefas do acampamento. “A guerrilha foi uma grande escola. Quem queria aprender algo, aprendia. Os velhos – como chamam carinhosamente ao secretariado – insistiram que todos nos formássemos, mas aqui há de tudo: pessoas estudadas e camaradas no processo de alfabetização”.

No caminho, conheço Santiago, um conterrâneo citadino que entrou na guerrilha depois de militar na Juco (Juventude Comunista). Um tipo curioso e com um singular talento para fazer piadas, que, enquanto prepara a comida, me convida a beber um suco de curuba (fruta colombiana). Me conta histórias de guerra e da árdua transição que tem sido a construção da paz. Como seus camaradas, ele acredita fortemente na transformação política do país e na necessidade do partido de continuar a luta: “Ninguém consegue ganhar a guerra. Todas e todos concordamos em aceitar esse processo. Os meios mudam, mas o objetivo continua sendo o mesmo”. Reconhece erros táticos durante o conflito. As FARC concentraram-se essencialmente no mato, perdendo foco nas cidades – as quais concentram hoje mais do 80% da população colombiana. Nisso coincide com Julian, que horas atrás me disse: “Aqui vieram muitos jovens, estudantes das cidades. A selva os consumiu. Quem vem da cidade não se adapta nessas condições, acho que teriam sido chave pra permear as cidades, sem as quais a vitória é impossível”. O jargão e os costumes do acampamento têm caráter bucólico. Sentem hostilidade das cidades, especialmente da capital, e a sua projeção política está fortemente ligada às suas bases rurais.

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Em poucos minutos muda o tempo: a temperatura cai e, após um vendaval que tira parte do telhado da sala central, um aguaceiro cai inadvertido. Nos recolhemos na cozinha e aproveitamos para comer. O relógio marca 18h15. Trabalhamos nas comunicações e numa contagem geral da brigada. A conversa vai perdendo seriedade. Ouvimos risadas acompanhadas do ritmo da música farquiana. O ambiente vai se animando e nos encorajamos a tomar uma cerveja no bar da vereda.

Chegamos a um galpão com cerca de 100 pessoas. Uma dança animada ao lado de uma torre de garrafas é o cenário em que se alternam conversação e canção. Pedimos algumas cervejas e, na chegada, nos oferecem uma aguardente de anis. “Saúde!” Aos poucos, um grupo de homens reúne-se numa mesa. Alguém me pede uma caneta e começam a fazer contas, concentrado. Sem aviso, correm para a parte traseira, onde há um curral de galo e, transbordando testosterona, gritam: “Isso, colorado!”, “bata nele, saraivado!”. Homens robustos, com várias cervejas acima posicionam-se ao redor. Um cenário que pressagia briga em qualquer outro lugar. Não ali. Retiram os galos antes de que um morra e, com calma, acertam as dívidas acordadas sem queixa alguma. Continua a festa.

Yolima e o”Profe” – um membro do Partido Comunista que nivela os farquianos no sistema educacional – convidam-me a sentar com a molecada. Ficamos até tarde discutindo. Todos expressam incertezas sobre o processo, preocupados com as condições em que vivem e os sucessivos descumprimentos de promessas pela parte do governo, mas confiando cegamente nos velhos. Estão convencidos de que o processo está blindado: “Se não fosse assim, eles – os velhos – teriam parado a negociação. Não vão entregar a organização de mão beijada”, – diz um deles. “Nestes sete meses vários têm saído daqui. Alguns voltam, outros não. Uns estão visitando familiares; outros, quem sabe, terão arranjado um trampo. Não sei, meu irmão”, – afirma outro. O certo é que essa dubiedade é o resultado da ausência de comandos nacionais nas ZV. As FARC são uma organização extremamente hierárquica e a incerteza das atividades locais tem fragmentado internamente o alento de seus militantes. Parece não haver uma base fundamental, no que deveria ser uma dupla orientação tática: por um lado, os membros das FARC que participaram no Congresso; por outro, uma reestruturação – já não nômade – das bases, para começar a construir processos produtivos inspirados na economia solidária, espaços de reconciliação, estruturas organizacionais baseadas no comum… enfim, exemplos práticos que ancorem, de forma objetiva, a projeção dessa Nova Colômbia que os quadros do partido irão defender nas instituições nacionais. Já são 4 horas da manhã e temos apenas uma hora e meia para dormir. À barraca.

Os Presos

Acordo tremendo do frio, desconcertado. Escuto o eco do megafone: “Todas e todos os camaradas à sala, vamos começar as atividades”. “Merda, já são 6 horas da manhã!”, –penso, enquanto agarro a toalha e saio da tenda. “Companheira, onde estão os chuveiros?” – pergunto, ao que ela me aponta um caminho que se perde na névoa. Chego a uns tanques de água. Nada como um banho gelado para curar a ressaca. Homens, mulheres, crianças e idosos tomam banho juntos. Do meu lado, há um grupo de mulheres que criticam a briga de galos. “Que pena dessas criaturas”, se ouve dizer. Enquanto isso, no próximo tanque, dois jovens recriam, empolgados, alguma das lutas. Balde de água fria e saída para a sala. Um dos meninos da cozinha me vê entrar, me faz um gesto escondido para acompanhá-lo. Serve um prato de banana da terra com ovo frito.

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Após o café, começamos a organizar a viagem a ZV “Simon Trinidad”. Pegamos a mesma trilha e, cerca de 40 minutos de caminhada depois, chegamos ao acampamento. Menor e bem mais organizado. Há poucas pessoas, mas se percebe um tráfego constante de entrada e saída: são os parentes dos prisioneiros que vêm visitá-los. Parece uma fazenda com várias mesas, onde os cativos desta prisão a céu aberto conversam, jogam xadrez ou recebem a visita de um irmão ou de uma prima. O tempo muda de velocidade, tudo parece mais lento, estático. Falando com as pessoas, o mesmo diálogo parece se repetir: “Como vai, irmão?”, “Bem, aqui esperando a liberdade”. “Senhora, como você está?” “Aqui, camarada, esperando a liberdade”, como na repetição reiterada de um filme contínuo. Existem algumas redes em que alguns presos permanecem impassíveis, desenhando um horizonte imaginário com os olhos, imperturbáveis, como quem olha chover.

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Numa mesa, reúnem-se Martha, Julian, um homem de cerca de 40 anos e uma mulher idosa – que descubro ser a mãe desse homem. Eu os abordo. Eles me cumprimentaram e, como se me conhecessem da vida toda, incluem-me na conversa. O homem comenta que foi convocado ante a Jurisdição Especial da Paz. “Eu imagino que eles vão me perguntar: quais eram suas atividades? De que combates participou? Lidou com explosivos? Nada, dizer como foram as coisas, não é?”. Pergunto à mulher: “Senhora, você não viria morar aqui?” “Não, filho. Eu lá – em Villavicencio – tenho o meu negócio. Se eu vier, quem vai pagar a minha aposentadoria?” “Bom, mãe, eu vou ficar aqui, vamos montar projetos produtivos com os moleques. Se não o que, lutamos por nada? Não, senhor, aqui vamos continuar!”. “Já estão cultivando?”, – pergunto. “Paciência, irmão. Não há mais nada para cultivar aqui do que paciência”, – responde.

O Paraíso Perdido

[Parêntesis] Há um personagem muito importante a quem não tenho feito justiça nesse relato e, em respeito à verdade, proponho-me apresentá-lo. Chama-se Fabián. É um jovem de uns 4 anos, intrépido, aventureiro e com uma criatividade efusiva que não conhece a nostalgia. É o sobrinho de Julian. Assim que ele me viu com a câmera, aproximou-se com curiosidade, pedindo-me para ensiná-lo a tirar fotos. Expliquei o pouco que sei e, a partir daí, nos tornamos inseparáveis. O escritor e comediante espanhol, Jaume Perich, disse: “Os loucos e as crianças dizem sempre a verdade. Por isso que foram criados os hospícios e as escolas”. Fabián é um daqueles corajosos. [Fecha parêntesis]

São duas da tarde e me sento para almoçar um prato de arroz, feijão e banana. Nisso, chegam Yolima e Fabian: “Acabe o almoço logo, vamos jogá-lo no charco!” Eu tinha ouvido falar de uma cachoeira perto do acampamento, mas achei que não haveria tempo para vagar pela área. Alguns colegas ouvem a ameaça e ficam entusiasmados, juntamos a um grupo e partimos beira abaixo no caminho.

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Chegamos num matagal que conduz a uma escada artesanal de passos longos e inclinados. Em pouco tempo, escutam-se gritos e mergulhos. Vê-se uma lagoa entre as ramagens, onde os farquianos e os camponeses locais se confundem entre jogos. Alguns jovens pululam dos troncos das árvores enquanto um casal se abriga na sombra oferecida por uma rocha gigante, erguendo, sobre uma cachoeira tímida, uma ponte natural. Um desses paraísos perdidos no interior do país que apenas os ex-guerrilheiros conhecem. “Estamos vendo com algumas companheiras para criar um grupo de guias. Queremos oferecer passeios ecológicos às pessoas que nos visitarem” – Yolima me diz. Todos na água. Começa a escurecer ​​e voltamos para o acampamento para reagrupar e preparar a viagem de volta a Bogotá. Aguarda-nos o mesmo caminho que nos trouxe.

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Se sente o gosto de despedida, alguns dias foram suficientes para dar à partida um tom dramático. Alguém, em tom de piada, diz: “E aí, saideira?”. “Vamos lá, camarada”, – respondemos em uníssono.

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