País vai às ruas, para voltar a respirar. E depois?

Tsunami da Educação contagiou as escolas e pode espraiar-se pela sociedade, a partir desta quarta. O que ele revela sobre as fragilidades do projeto neoliberal e a necessidade de uma saída alternativa

.

Poucas vezes uma greve foi tão necessária quanto a que estudantes e educadores farão amanhã, em centenas de cidades. Ela pode tirar o país de uma contradição paralisante, que perdura há meses. Por um lado, o governo Bolsonaro patina. A completa ausência de projeto, a precariedade intelectual e a incapacidade do diálogo fecham-lhe os caminhos. Seus projetos estacionam no Congresso. Uma sequência de atos irresponsáveis aumenta, a cada dia, os riscos de um impeachment – ou de revezes que levem à renúncia. A mídia, que abriu caminho para ele, indispõe-se. No entanto, uma espécie de agenda implícita avança avassaladora – que não tinha, até agora, oposição relevante. Desmonte dos serviços públicos, a ponto de faltarem, no SUS, medicamentos vitais. Ataques ao mundo do trabalho, na forma de contrarreforma da Previdência, inviabilização dos sindicatos, preparativos para adoção da “carteira verde-amarela”, sem direitos. Pico de violência contra negros, pobre e periferias, agora com uso de novos instrumentos de terror, como os “caveirões voadores” e o assassinato por snipers posicionados em plataformas de tiro. Onda obscurantista, que vai da “Escola sem Partido” à equiparação dos abortos a homicídios. Espectro de uma mega-leilão que pode entregar o Pré-Sal às petroleiras internacionais.

Este cenário complexo deve-se, em grande medida, a uma ambiguidade marota. Mídia, maiorias no Congresso e correntes hegemônicas no Judiciário procuram distanciar-se do governo, temendo ser tragadas em seu presumível colapso. Mas comungam com quase todos os pontos do programa do presidente – em especial, o ultracapitalismo, em seus dois aspectos: antissocial e antinatureza. Isso gera entre aqueles que, como Outras Palavras, se opõem aos retrocessos, uma sensação de impotência dupla. Acordaremos do pesadelo atual? Não corremos o risco, nesse caso, de mergulhar num outro, o de um “bolsonarismo sem Bolsonaro”?

A potência do tsunami em preparação para esta quarta-feira está no fato de negar – e, em certo sentido, inverter – esta dupla cilada. A greve alastrou-se, em boa medida, graças a um governo obtuso. Foi convocada inicialmente pelos professores – que estão entre as grandes vítimas do desmonte das aposentadorias. Mas ganhou dimensão inteiramente nova com a entrada em cena dos estudantes. Provocou-os a ignorância arrogante do ministro Weintraub. Não lhe bastou cortar 30% das despesas livres das Universidades e Institutos Federais; reduzir também as verbas para o ensino; liquidar as agências de apoio à pesquisa científica; ou cortar as bolsas para pós-graduação. Ele precisava também acessar algum recalque pessoal, quando ao se referiu à “balbúrdia” universitária, às “festas inadequadas” e “seminários absurdos”, ou defendeu a invasão dos campi pela polícia. As palavras incendiaram as escolas.

Mas nas manifestações deste 15-M está implícita uma visão de mundo que vai muito além da crítica ao bolsonarismo – abrange todo o projeto das elites. Ela tem apreço pelo conhecimento e pela técnica, rejeitando por isso a tentativa de subordinar as universidades e institutos à lógica do lucro mercantil. Inclui desejo de superar nossa desigualdade abissal, e por isso opõe-se ao desvio de recursos públicos em favor do baronato financeiro. Está antenada com o debate sobre os impasses civilizatórios contemporâneos – daí não se dobrar à negação da Ciência, dos riscos de catástrofe climática, da importância das vacinas ou, no plano geopolítico, à tentativa bizarra de subordinar o Brasil às políticas dos Estados Unidos. Aposta que a sociedade é capaz de refletir sobre si mesma e a valorizar sua própria diversidade – e nega, em consequência, os ataque à Sociologia e à Filosofia, ou a tentativa de mobilizar as massas mais brutalizadas oferecendo-lhes o porte da armas, o machismo ou o ódio aos LGBTs.

* * *

Estas ideias antissistêmicas estão mobilizando jovens, numa escala nunca vista em muitos anos. Nas imagens, garotas e garotos pintam cartazes, panfletam, convocam pais e familiares, reúnem-se em rodas de conversa, assembleias e debates. Sugerem um ambiente semelhante ao da Primavera Secundarista, em 2016. E se o bolsonarismo, muito a contragosto, tiver ajudado a difundir aqui a rebeldia juvenil que marca o crescimento da simpatia pelo “socialismo” nos EUA; ou as “sextas-feiras pelo futuro”, difundidas em março por dezenas de cidades no mundo?

Mas, na crise do bolsonarismo, outro fenômeno agrega-se a este. A presença, nas ruas, de um setor articulado e munido de razões para lutar pode servir de centelha. Multidões que votaram contra Bolsonaro, e que foram antes às ruas em jornadas memoráveis com as do #elenão, os protestos contra a execução de Marielle Franco ou os atos que tentaram barrar o impeachment, em 2016, sentem-se perdidas. Não houve oposição, desde a posse de Bolsonaro. As esquerdas institucionais refluíram. As críticas ao governo e às políticas neoliberais ficaram estranhamente restritas a figuras como Reinaldo Azevedo, André Lara Rezende e o general Mourão… Agora, os educadores e estudantes sinalizam uma retomada.

E há, além desse, um outro contingente: o dos envergonhados. Milhões votaram em Bolsonaro por acreditar em seu discurso antiestablishment. Curtem, agora, a vergonha de haver optado por um homem cuja famiglia cultiva “rachadinhas” e laranjas; que se esfalfa por restabelecer, no Congresso, todas as dinâmicas surradas do “toma-lá-dá-cá”; que assiste indiferente ao avanço da crise, do desemprego e da depressão; que, acima de tudo, nada fez para honrar quem viu nele chance de uma “nova política”. Também estes precisam de um canal para conduzir sua frustração e de uma razão concreta para mudar de postura, face à crise brasileira. Os educadores e os estudantes podem oferecer este motivo. Têm rostos que não podem ser associados aos de uma esquerda histórica e a legitimidade de uma causa incontestável.

* * *

Tirando a falta de um projeto de governo, a ausência mais notável, nos últimos meses, é a de oposição. Além dos ataques aos direitos e à proporia ideia de nação, sucedem-se, no governo, as patetices. Mas – e nisso regredimos muito, em relação à ditadura pós-1964 – não há contestação.

O mais chocante é a passividade da oposição institucional diante de um projeto claramente fracassado. Critica-se, moderadamente, os ataques a certos direitos – mas não o conjunto da obra. Ninguém aponta um caminho alternativo; ninguém diz: “chega de cortes, de restrições, de depressão – só sairemos da crise pela rota oposta: ampliar direitos, distribuir riqueza, valorizar o público, governar para as maiorias, investir no SUS, reconstruir escolas, tributar os ricos, defender o mundo do trabalho, estabelecer a Renda da Cidadania”. Este programa “radical” parece amedrontar os velhos partidos — ao contrário do que ocorre mesmo em países como os EUA e a Grã-Bretanha, onde despontam lideranças como Alejandra Ocasio e Jeremy Corbyn.

Quem sabe, o tsunami da Educação não se torna uma oportunidade para enxergar (e rever) a paralisia. Quem sabe, encontramos – ou nos partidos, ou em quem ocupe seu lugar – energia para romper o círculo de ferro do neoliberalismo. Quem sabe, a partir de amanhã.

Leia Também:

9 comentários para "País vai às ruas, para voltar a respirar. E depois?"

  1. Adriano Picarelli disse:

    “A paixão de conhecer o mundo”, Madalena Freire, Paz e Terra…

  2. Adriano Picarelli disse:

    “O MEC está prestes a esterilizar uma geração de brasileiros. O único projeto do governo para a pasta é a destruição do que ele desconhece. Ou seja, quase tudo”, Leandro Beguoci, Folha/Uol, 15 de maio de 2019

    https://www1.folha.uol.com.br/colunas/novaescola/2019/05/o-mec-esta-prestes-a-esterilizar-uma-geracao-de-brasileiros.shtml

    Leandro Beguoci é diretor editorial de Nova Escola…

  3. Adriano Picarelli disse:

    “Vivi o Estado Novo e passei pela ditadura, mas nunca vi um período tão assustador como este na Educação” Uma das maiores autoridades em Alfabetização, Magda Soares considera as ideias do novo governo um retrocesso sobre o tema, Laís Semis, Revista Nova Escola, 10 de Janeiro de 2019

    https://novaescola.org.br/conteudo/15004/vivi-o-estado-novo-e-passei-pela-ditadura-mas-nunca-vi-um-periodo-tao-assustador-como-este-na-educacao

  4. Adriano Picarelli disse:

    “Volta às aulas de 2019 é um retorno ao nosso passado ditatorial nas escolas”, Eliana Alves Cruz, The Intercept Brasil, 11 de fevereiro de 2019

    https://theintercept.com/2019/02/11/militarizacao-das-escolas/

  5. Adriano Picarelli disse:

    “A crise da escola é a crise da democracia”. O pedagogo norte-americano Henry Giroux defende que todas as disciplinas incorporem o pensamento crítico para promover o combate a ideologias extremistas: “A direita não quer que as pessoas pensem”, Ana Torres Menárguez, El País, 14 de maio de 2019

    https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/09/internacional/1557407024_184967.html

  6. Adriano Picarelli disse:

    “A educação não é para amadores”, diz educador português José Pacheco, Beatriz Montesanti, Uol Educação, 15 de maio de 2019

    https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/05/15/a-educacao-nao-e-para-amadores-diz-educador-portugues-jose-pacheco.htm

  7. Adriano Picarelli disse:

    “[…] É óbvio que o ódio à democracia não é novidade. É tão velho quanto a democracia, e por uma razão muito simples: a própria palavra é a expressão de um ódio. Foi primeiro um insulto inventado na Grécia Antiga por aqueles que viam a ruína de toda ordem legítima no inominável governo da multidão. Continuou como sinônimo de abominação para todos os que acreditavam que o poder cabia de direito aos que a ele eram destinados por nascimento ou eleitos por suas competências. Ainda hoje é uma abominação para aqueles que fazem da lei divina revelada o único fundamento legítimo da organização das comunidades humanas. A violência desse ódio é atual, não há dúvida. […].”

    “O ódio à democracia”, página 08 do livro do filósofo francês Jacques Rancière, publicado na França em 2005 e, no Brasil, em 2014…

  8. Adriano Picarelli disse:

    “Sem ela, há o silêncio do totalitarismo. O ministro da Educação carimbou as universidades como agentes da balbúrdia e os estudantes planejam revidar com uma balbúrdia programada”, Roberto DaMatta, Estadão, 15 de maio de 2019

    https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,sem-ela-ha-o-silencio-do-totalitarismo,70002829271

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *