O ruidoso colapso das criptomoedas

Em um ano, o bitcoin perdeu 73% de seu valor. Os investidores fogem em massa. Instituições cripto quebram. E surge a verdadeira face do sistema: um gigantesco esquema de pirâmide, que só para em pé enquanto pode atrair novos incautos

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Por Frances Coppola, no blog Coppola Comment | Tradução: Antonio Martins

O ecossistema das criptomoedas cresceu de modo muito expressivo nos últimos três anos. Muitos dos aplicadores ganharam quantias de dinheiro que mudaram sua vida – em papel, ou talvez mais precisamente no computador. Mas o problema com os ganhos em papel é que eles tendem a evaporar como a névoa da manhã, quando o mercado muda. Isso aconteceu no final de 2021 e agora o cenário é claramente de baixa. O bitcoin caiu de mais de US$ 60 mil em novembro de 2021 para apenas US$16 mil agora. Para quem comprou a criptomoeda perto do topo, é uma perda real gigantesca. E mesmo que não seja uma perda real para as pessoas que compraram bitcoins em 2018, ainda é uma perda de papéis gigantesca. Ninguém gosta de ver um ganho financeiro potencial ser varrido pelos mercados antes que ele possa ser concretizado.

Como era de prever, os aplicadores têm vendido criptomoedas em massa. Para que os investidores possam retirar seus ganhos extraordinários, deve haver dinheiro real no sistema – dólares, euros, ienes, libras esterlinas. Mas o sistema cripto, ao contrário do sistema financeiro tradicional, é incapaz de criar dinheiro real. Ele pode criar fichas que representam dólares, euros, ienes, etc., mas estas não são aceitas para transações do mundo real, como a compra de condomínios nas Bahamas. Portanto, o sistema cripto precisa de influxos de dinheiro real. Quanto mais cresce, mais dinheiro real ele deve atrair.

Muito do dinheiro real que foi para este ecossistema nos últimos três anos veio de investidores institucionais. Mas, como qualquer banco lhe dirá, o dinheiro institucional não é a forma mais estável de financiamento. Os investidores profissionais são um grupo inconstante: eles retiraram seu dinheiro num átimo caso vislumbram uma oportunidade de lucro melhor, e correm ao primeiro sinal de problemas. Para um financiamento estável, você precisa de depósitos de varejo. Por isso, plataformas como a FTX1 visam especificamente os clientes de varejo, oferecendo alternativas de maior rendimento às contas bancárias, acrescidas de facilidades de pagamento on-line e cartões de débito, e incentivando os clientes de varejo a terem seus salários pagos diretamente nas contas da plataforma.

As taxas de juros sobre essas contas de depósito criptográfico focadas no varejo estavam muito acima das oferecidas pelos bancos. Mas por mais atraentes que fossem essas contas de alto rendimento, semelhantes às dos bancos, elas lutavam para atrair a quantidade de novos depositantes de que o sistema precisava. Muitos clientes de varejo desconfiaram das cripto sua reputação como veículo para atividades ilegais e suspeitaram dos altos retornos. Receavam que pudessem perder seu dinheiro. Por isso, as plataformas precisavam convencer os depositantes do varejo de que essas contas eram tão seguras ou mais seguras do que as contas bancárias.

Algumas apostaram na publicidade e no marketing de rede para persuadir as pessoas a oferecerem seu dinheiro. A Celsius Network, por exemplo, se vendeu explicitamente como “melhor do que um banco“. Ela explorou as memórias da crise financeira de 2008 para convencer potenciais clientes de que seu dinheiro não estava seguro nos bancos. Sugeria que transferissem para a próprio Celsius, que seria completamente seguro, além de oferecer melhores taxas de juros do que qualquer banco. Isto era, é claro, uma mentira. Na realidade, a Celsius estava correndo riscos com depósitos de varejo que nenhum banco agora estaria autorizado a assumir. Tratava-se de reunir depósitos de clientes e emprestar a devedores não revelados e, agora sabemos, de alto risco, re-hipotecando garantias prometidas contra esse empréstimo, o que efetivamente os tornava empréstimos sem garantia. Não havia nem apoio de liquidez do banco central nem seguro de depósitos. E o esquema não estava sujeito aos regulamentos de capital e liquidez que protegem os depositantes contra perdas, se os bancos tradicionais falharem. O modelo de negócios da Celsius era muito mais perigoso para os depositantes do varejo do que o dos bancos. Mas os repetidos avisos de observadores informados, sobre o modelo de negócios da Celsius, foram descartados e ignorados por muitos na comunidade cripto.

A festa chegou ao fim para Celsius já em abril de 2021, quando as ordens de Nova Jersey e outros estados norte-americanos forçaram-na a deixar de oferecer contas remuneradas nos EUA. Mas ela tropeçou por mais dezoito meses, escondendo o crescente buraco em seu balanço com as vendas de sua própria moeda, e mantendo a captação de clientes de varejo, inclusive norte-americanos. Um relatório da Justiça do país revela que, embora tenha parado de pagar juros aos clientes norte-americanos, a Celsius não segregou seus fundos e continuou a usá-los para apoiar a liquidez na plataforma. Até 28 de outubro de 2022, cerca de 16,9 milhões de dólares de seus depósitos haviam desaparecido.

Outras plataformas encontraram outra forma de convencer as pessoas de que era seguro colocar seu dinheiro em cripto. O dinheiro produzido nos bancos tem a garantia da FDIC [Federal Deposit Insurance Corporation, agência do Estado norte-americano que assegura os depósitos bancários], ou de seu equivalente em outros países. Assim, plataformas cripto como a Voyager entraram em relações com bancos segurados pela FDIC e em seguida comercializaram depósitos como segurados pela FDIC. Isto era, estritamente falando, verdade – mas os depositantes só estariam cobertos se o banco falisse, não se a plataforma falhasse. Não que a Voyager se importasse. Ela disse alegremente aos clientes que seus depósitos estavam segurados se o banco ou a plataforma falissem. Quando a plataforma quebrou, em junho de 2022, os clientes exigiram o pagamento de seu seguro FDIC. Mas não houve pagamento. A Voyager tinha mentido. O FDIC não era responsável por perdas decorrentes da falência da plataforma.

A Voyager não foi a única ou mesmo a primeira plataforma cripto a vender o seguro FDIC, que não existia, aos depositantes do varejo. Foi um esquema de longo prazo em todo setor. Em março de 2020, critiquei publicamente o credor cripto Cred por alegar que seus depósitos de varejo estavam segurados pela FDIC, quando claramente não estavam. A Cred faliu em novembro de 2020, levando muito do dinheiro de seus depositantes com ela. Como eu havia advertido, eles acabaram não se beneficiando de seguro algum.

E não foram apenas as plataformas de empréstimo que asseguraram que seus depósitos eram protegidos pela FDIC. Corretoras cripto, notadamente a Coinbase e a Gemini, disseram a seus clientes que os depósitos se qualificavam para o seguro da FDIC. Tanto quanto sei, a FDIC nunca confirmou que os depósitos gerados por qualquer troca de criptomoeda ou plataforma do gênero se qualificam para o seguro direto. Mas durante mais de dois anos, as corretoras e plataformas de cripto continuaram se apresentando como seguradas pela FDIC. Foi somente no verão de 2022 que a FDIC fez uma tentativa séria de acabar com esta ilusão.

Por que a FDIC levou tanto tempo para agir? Em parte, suspeito, porque as criptomoedas não eram vistas como um risco sério para o sistema financeiro convencional. E talvez também porque elas nunca foram elegíveis para o seguro FDIC – portanto, não havia nenhuma razão particular para que a FDIC se interessasse por ela. Seja qual for o motivo, a FDIC não agiu até que a falência da Voyager revelasse a venda sistemática e incorreta de seguros FDIC a clientes de varejo.

No exato momento em que a FDIC estava começando a se impor contra a venda ilusória de seguros por empresas cripto, a bolsa FTX pulou para o bonde das fraudes. Em uma série de tweets, Brett Harrison, CEO da FTX, alegou que os depósitos cripto naquela bolsa seriam contas individuais em seu banco parceiro e, portanto, se qualificariam para a proteção da FDIC. Várias pessoas ressaltaram que isto era inconsistente com os termos de serviço do FTX, que diziam que os depósitos seriam mantidos em contas “omnibus“. Mas Harrison insistiu que os termos estavam sendo atualizados e que o seguro FDIC se aplicaria.

A razão pela qual a FTX decidiu anunciar seus depósitos como segurados pelo FDIC não está clara. Mas sabemos agora que a FTX tinha um buraco enorme em seu balanço por causa das perdas da Alameda Research, outra empresa do setor, à qual havia emprestado dinheiro. Por isso, talvez estivesse tentando desesperadamente arrastar novos depositantes para se manter de pé. Não que novos depósitos fossem capazes de preencher o buraco. Derramar mais água em um balde furado não impede que vaze.

De qualquer forma, o esquema FDIC da FTX não durou muito tempo. Em agosto de 2022, o FDIC atingiu a FTX e outras quatro empresas cripto com ordens de cessar e desistir, obrigando-as a parar imediatamente de “comercializar” seguros FDIC. Harrison, que foi especificamente nomeado na ordem, apagou seus tweets e a FTX alterou seus termos de serviço para eliminar todas as referências ao seguro de depósito.

Não sabemos até que ponto o fim do esquema FDIC contribuiu para a falência da FTX, mas ela não sobreviveu por muito tempo à ordem de cessar e desistir. Menos de três meses depois, sofreu uma corrida catastrófica sobre os depósitos, o que destruiu completamente sua ilusão cuidadosamente elaborada de solvência e forçando-a a pedir falência. Seus depositantes remanescentes podem perder a maior parte, talvez todo o seu dinheiro.

O FTX é o caso mais recente de uma longa linha de plataformas cripto que afundaram levando o dinheiro de seus depositantes com elas. Provavelmente não será a última. Você pensaria, dado quanto dinheiro os depositantes de varejo já perderam e ainda estão por perder, que as plataformas restantes se absteriam de oferecer retornos obviamente insustentáveis. Mas não. Elas ainda estão oferecendo rendimentos insanavelmente altos em depósitos em dólares ou equivalente em dólares. Aqui, por exemplo, o Tron DAO Reserve, de Justin Sun, promete rendimentos sem risco, de 39,66% a 46,14% ao ano, em criptomoedas como a tether (ancorada em bitcoins e ethereum), a USDCoin e a TrueUSD. E aqui está a nêmesis da FTX: a Binance oferece rendimentos superiores a 65% em depósitos nas mesmas criptomoedas.

Estas são, aliás, as principais moedas estáveis do ecossistema cripto, prontamente obtidas a partir de trocas criptográficas. Tudo o que você tem que fazer é depositar alguns dólares reais. Depois você os troca por criptomoedas “estáveis” [stablecoins], alimenta com elas a boca sedenta do Tron DAO Reserve ou da Binance, senta-se e recolhe seus lucros, que são, naturalmente, muito melhores do que qualquer coisa que você possa obter em um banco ou fundo convencional. E tudo é totalmente livre de riscos, porque estas criptomoedas “estáveis” são dólares, não são mesmo?

É claro que isto é bom demais para ser verdade. Mas sem dúvida alguns otários acreditarão nisso e entregarão seus dólares. E isso é exatamente o que a plataforma quer. Liquidez em dólares, para preservar a ilusão de que há dólares suficientes no sistema para que todos possam retirar não apenas o que depositaram, mas também o que ganharam.

Já existem provas substanciais de que o espaço cripto está infestado de fraudes, golpes e esquemas ponzi, [semelhantes aos “golpes da pirâmide”]. Mas eu iria mais longe. Todo o ecossistema cripto é ponzi. Tudo depende de cada vez mais pessoas disponibilizarem suas economias e salários para pagar os retornos lunáticos prometidos pelas plataformas aos que podem fornecer a liquidez de que tão desesperadamente elas necessitam. Não é à toa que plataformas como a FTX caçam fatias de mercado e insistem que quaisquer problemas são apenas “crises de liquidez”. Quanto mais pessoas elas puderem atrair, mais liquidez terão e, portanto, mais tempo poderão sobreviver.

E se você acha que estou inventando isso, deveria ouvir Sam Bankman-Fried explicar à equipe de Odd Lots da Bloomberg como o ecossistema cripto é, na realidade, um esquema gigantesco de ponzi. Ele está aparentemente falando sobre a busca de lucros em “finanças descentralizadas”, mas as partes centralizadas do cripto são totalmente dependentes de um suprimento constante de tolos.

A necessidade do sistema cripto de convencer cada vez mais pessoas a oferecer suas economias para manter os esquemas ponzi torna endêmicas as falsas promessas e as vendas enganosas. E a série de falências nos altos escalões do sistema, que culminou no recente colapso do império de Sam Bankman-Fried, ainda não desencorajou os sobreviventes. Isso torna ainda mais imperativo que eles atraiam novos depósitos. Se não o fizerem, a estrutura toda implodirá.

Mas, ao final, ela implodirá. Porque é isso que sempre acontece com as pirâmides financeiras.


1Bolsa de criptomoedas baseada no paraíso fiscal das Bahamas, que faliu espetacularmente esta semana, no rastro da crise do bitcoin e assemelhados.

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