Meditação sobre os que partem e os que ficam

Quando a morte se torna corriqueira, vale recordar que as estatísticas de vítimas e os provérbios que amenizam o luto jamais eliminarão um duro fato: todos morrem de véspera. Por isso o vazio que deixam é uma laboriosa e agônica presença

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Nas últimas semanas, as estatísticas vêm apontando para um sensível aumento nos casos de infecção e morte por covid-19. Esse aumento, que vem sendo considerado como a 4ª onda da pandemia no Brasil, provavelmente pode ser explicado pelo abandono, total ou parcial, das medidas preventivas e pela chegada dos meses de frio em nosso país. Também existem outras possíveis razões para o aumento das estatísticas, como a escolha deliberada por não se vacinar ou não completar o ciclo vacinal, mas de qualquer maneira os dados justificam a importância de ainda mantermos determinados cuidados.

Aparentemente, o aumento estatístico dos casos de covid-19 seria suficiente para mobilizar novas políticas de intervenção pública ou alguma forma de conscientização social para estabelecer algum controle sobre a disseminação do vírus – mas isso não é totalmente verdadeiro. Apesar desse procedimento ser fundamental para a elaboração de políticas públicas, a organização dos casos de morte e contaminação em dados estatísticos é muito facilmente aproximado de outras variações matemáticas quaisquer. Por esse motivo, a estatística, passado o momento de maior temor da pandemia e, evidentemente, dependendo da maneira como é interpelada e utilizada, pode dificultar o enfrentamento desse fenômeno irrepetível: morrer.

Os casos de contaminação e morte, organizados em dados estatísticos, são transformados em eventos passíveis de serem medidos e calculados. Cada adoecimento e cada partida sem volta perdem sua singularidade e seus possíveis impactos desorganizadores naqueles que sofreram seus efeitos para adquirirem um lugar em uma ordem previamente determinada. As estatísticas contribuem, como dissemos, para a elaboração de políticas públicas que preservem a vida, mas, ao mesmo tempo, contribuem para atribuir medida, cálculo e sentido àquilo que é imensurável, incalculável e sem sentido.

A ausência de sentido no morrer pode ser vislumbrada por um provérbio popular: “Ninguém morre na véspera”. De acordo com esse provérbio, ninguém morre antes da hora, ou seja, todos morrem no momento em que devem morrer, seja por velhice, em decorrência de abuso policial, de violência doméstica ou de covid-19. Com esse ensinamento, espera-se alguma forma de resignação e aceitação por parte daqueles que ficaram. Se ninguém morre na véspera, então não há razão para o sofrimento ou para a indignação, pois um desígnio maior do que eu e você governa o sentido do mundo em que vivemos, impedindo que isso ocorresse de algum outro modo, que houvesse algo que pudesse ser feito para, pelo menos, contribuir para que o viajante do infinito pudesse ter ficado um pouco mais ao nosso lado.

As estatísticas e os provérbios, entretanto, não eliminam um fato inexorável: todos morrem na véspera. Emparelhar os números de mortos em um gráfico de linha e transmitir ensinamentos aprendidos desde a infância não alteram a maneira como a morte surpreende aqueles que ficam – mesmo quando a partida parece esperada. Promessas, compromissos, encontros e despedidas são interrompidos – e não somos sequer consultados a respeito dessa interrupção.

Quando minha irmã mais nova morreu no hospital, eu estava com minha irmã mais velha junto ao seu leito. Minha irmã mais nova, que respirava com a ajuda de aparelhos e já não me reconhecia direito, estava prestes a ficar inconsciente. Acompanhei os batimentos acelerados de seu coração, mas principalmente sua ofegante respiração. Sua respiração começou a ficar mais lenta, mais espaçada. Fiquei mais atento a esses ritmos lentos e vagarosos de seu tronco. Então, perguntei à minha irmã mais velha, que havia sido uma grande enfermeira durante anos, quando chegaria o último suspiro. E ela me respondeu: “quando não houver a próxima respiração”. E houve um momento em que a respiração seguinte demorou, demorou demais, nunca chegou. A última respiração, o último suspiro já tinha evanescido. Foi antes, foi na véspera. E justamente por isso continuei me despedindo de minha irmã mais nova mesmo depois de sua partida.

Enquanto escrevo este artigo, me dei conta de que minha mãe morreu exatamente nesse dia há alguns anos. Ainda havia tanto para falar e para fazer, mas a morte dela chegou antes. Quantas e quantas conversas essa partida mobilizou na família estão longe de serem contabilizadas. Não deu tempo de se despedir, faltou uma palavra, uma questão mal resolvida… Seguir adiante quando os próximos se vão dá um imenso trabalho. Para nós que ficamos, aqueles que se vão sempre vão antes da hora. E nesse intervalo infinito podem residir promessas não cumpridas, verdades não ditas, desejos não realizados.

Talvez, seja necessário se despedir muitas e muitas vezes daqueles que se foram. Assim, a surpresa que se é tomado pela partida na véspera pode ceder lugar à saudade que se experimenta nos dias seguintes. Sem pressa, sem atraso, sem regra: no tempo, passo a passo, digno de um encontro único, digno de um encontro irrepetível.

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