A lição de Lima Barreto na Crítica Impura

Décadas antes da redescoberta do autor de Policarpo Quaresma, o intelectual comunista Astrojildo Pereira reconhecia sua singularidade e importância, e sublinhava-lhe a visão militante da literatura. Leia o ensaio, em livro recém-lançado

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No ano do centenário de fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) a Boitempo Editorial e a Fundação Astrojildo Pereira relançam um autor fundamental de nossa cultura. Militante comunista e crítico literário, Astrojildo Pereira (1890-1965) publicou em vida cinco livros – alguns esgotados há décadas – que voltam agora à circulação, em novas edições: Crítica Impura; Formação do PCB; Interpretações; Machado de Assis; e URSS Itália Brasil.

Republicamos aqui no Outras Palavras um pequeno ensaio sobre a visão de Lima Barreto sobre o papel do escritor militante, recolhido na obra Crítica impura, o último livro publicado por Astrojildo. O trabalho apareceu em 1963 pela editora Civilização Brasileira dentro da coleção Vera Cruz, selo focado em literatura e estudos literários, e reunia em sua maior parte textos publicados em jornais e revistas. O desenho de capa da única edição publicada foi assinado pelo artista plástico Eugênio Hirsch, diretor de arte da Civilização Brasileira.

Esta segunda edição de Crítica impura preserva a integridade da obra lançada em 1963, realizando apenas uma atualização gramatical e uma padronização editorial, incorporando novos textos que enriquecem a experiência de leitura: o prefácio assinado pela escritora Joselia Aguiar e o texto de orelha do jornalista Paulo Roberto Pires. Inclui-se ainda como anexo um ensaio de Leandro Konder (1936-2014) sobre a vida e a obra de Astrojildo Pereira. Esse escrito, intitulado “Astrojildo Pereira (1890-1965)”, apareceu originalmente no livro Intelectuais brasileiros & marxismo, lançado pela Oficina de Livros em 1991.

Leia o ensaio. Para adquirir o livro, vá ao site da Boitempo Editorial.

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Lição de Lima Barreto

Por Astrojildo Pereira, extraído do livro Crítica Impura, Boitempo, 2022.

Em artigo sob o título “Literatura militante”, publicado no antigo semanário ABC (número de 7 de agosto de 1918) e não incluído no volume Bagatelas,1 exarou Lima Barreto algumas considerações muito significativas sobre o que ele mesmo chamava o seu “ideal de arte”.

Referindo-se aos livros de Anatole France, apontava-os como exemplos típicos de literatura militante: “Eles nada têm de contemplativos, de plásticos, de incolores. Todas, ou quase todas as suas obras, se não visam à propaganda de um credo social, têm por mira um escopo sociológico. Militam”. Convém reparar, de passagem, como a opinião de Lima Barreto acerca do “grande mestre francês” (palavras suas) difere completamente da opinião, muito em voga nos últimos anos, na França, segundo a qual Anatole é apenas um “cético”, um “pessimista”, um “desencantado”, um “dissolvente” cuja influência teria sido das mais deletérias sobre a juventude do seu tempo.

Guyau era dos autores mais lidos e mais estimados por Lima Barreto. Citando-o e comentando-o, no artigo em apreço, louvava-se nos seus preceitos para ver na obra de arte “o destino de revelar umas almas às outras, de restabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo entendimento entre os homens”.

Seria errôneo supor que o romancista brasileiro buscava ensinamento ou apoio para as suas concepções estéticas somente em mestres de tendência revolucionária, como eram Anatole e Guyau. Ele se nutria igualmente em pensadores que se chamavam, por exemplo, Taine e Brunetière.

Aceitava a lição de Brunetière, quando este último ensinava que a literatura “tem por fim interessar, pela virtude da forma, tudo o que pertence ao destino de todos nós”; e completava a lição, acrescentando, por conta própria, que “a solidariedade humana, mais do que nenhuma outra coisa, interessa ao destino da humanidade”. Palavras de tão fácil compreensão, mas, ao mesmo tempo, de tão profundo sentido, e que hoje, mais talvez que em nenhuma outra época, deveriam gravar-se na própria carne de toda obra de arte e de pensamento.

Sabe-se que Lima Barreto não tolerava prosápias de qualquer espécie, manifestando a cada passo o seu sarcasmo desdenhoso contra os pavões e pavoas da chamada alta sociedade. Aferrado a essa ojeriza, ele entendia que os escritores brasileiros não deviam perder tempo nem amesquinhar-se em “cantar cavalheiros de fidalguia suspeita e damas de uma aristocracia de armazém por atacado”. Na sua opinião, o dever do escritor, e do artista, em geral, consiste, primeiro que tudo, em fazer da sua arte um instrumento de edificação moral da massa popular e não um meio de divertimento ocioso de falsas elites: “devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou um italiano se podem entender e se podem amar, no interesse comum de todos nós”.

Sua posição foi de certo modo a de verdadeiro desbravador. Realizando nas suas obras o ideal de arte que preconizava assim tão simplesmente, sem complicações nem sutilezas inúteis, Lima Barreto como que desvendava, aos olhos das gerações de escritores e artistas que viriam depois dele, novas perspectivas e novos rumos de trabalho. “A obra de arte” — escrevia, citando Taine — “tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Eles estão aí, à mão, para nós fazermos grandes obras de arte.” Seria inexato avançar que o movimento de renovação da literatura e da arte, que se processa no Brasil desde os anos de 1920 e tantos, se inspirou em Lima Barreto; mas creio perfeitamente justo afirmar que na sua obra já se encontravam os germes de muitas das árvores mais belas produzidas por esse movimento. E essa verificação nos leva a definir e por conseguinte melhor compreender a sua importância histórica na literatura brasileira.

Continuador da boa tradição, que vinha de Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto encarnou sozinho o difícil momento de continuidade e ligação entre o passado, que morria com Machado de Assis, e o futuro, que ia surgir com o tumulto modernista.

(1941)

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1Lima Barreto, Obrascompletas, v: Impressõesdeleitura(prefácio: M. Cavalcanti Proença, São Paulo, Brasiliense, 1956).

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